segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Brasil: 20 anos após a ascensão de Lula ao governo

Artigo extraído e traduzido do link:

https://revistaedm.com/edm-22-10-9/brasil-a-20-anos-del-ascenso-de-lula-al-gobierno/


 Rafael Santos

O cenário político em vista do segundo turno.

 

O processo eleitoral em curso no Brasil ocorre exatamente 20 anos após a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo daquele país, coincidência propícia para analisar o panorama atual à luz do que aconteceu nessas duas décadas.

Em outubro de 2002, Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), venceu as eleições presidenciais sobre o candidato do PSDB, José Serra, por 46,44 a 23,29% no primeiro turno e 61,27 a 38,72 % na votação final. Serra era a continuação do atual governo de Fernando Henrique Cardoso, que havia levado a situação econômica a uma grave deterioração, em decorrência do agravamento da crise mundial.

O crescimento de Lula nas pesquisas anteriores, que o colocaram acima de Cardoso-Serra, foi visto com apreensão por importantes setores das classes dominantes. A máquina de propaganda do grande capital desenvolveu uma campanha na qual pintou um quadro de catástrofe econômica se Lula triunfasse. Lula acabou dando uma guinada: publicou uma "Carta ao Povo Brasileiro" em que, para aliviar os temores do grande capital, renunciou a ser um "governo de transição para uma economia socialista" - algo que propunham antigas plataformas petistas.

Para dar mais segurança, Lula escolheu José Alencar, empresário têxtil milionário que apoiou ativamente o golpe de 1964 e era então vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria e senador federal associado ao Partido Liberal (PL), como vice-presidente candidato sob cuja sigla Jair Bolsonaro é apresentado atualmente. A escolha de Alencar não foi "por acaso", mas uma garantia extra de que, em caso de falta de confiança do capital em seu governo, Lula pudesse ser substituído "constitucionalmente" por um homem do establishment. Aliás, foi o que aconteceria anos depois com a sucessora de Lula, Dilma Rousseff, destituída e substituída por Michel Temer, o deputado de direita que ela havia colocado como "garantia". Para as eleições atuais, Lula mais uma vez dá a “garantia renovada”, nomeando como companheiro de chapa, Geraldo Alckmin, líder do PSDB e um homem ligado à Opus Dei, participante do golpe que afastou Dilma Rousseff e depois apoiador de Temer.

Voltando a 2002: após a vitória no primeiro turno, Lula redobrou sua adaptação à direita entreguista. Antes do segundo turno, ele concordou em assinar, pressionado pelo governo norte-americano e junto com o presidente Fernando Henrique Cardoso e os candidatos dos demais partidos, um compromisso público com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para respeitar os "contratos" existentes. Leia: a renúncia a qualquer tipo de nacionalização e o juramento de pagar a dívida externa.

 

Dívida e militarização

Lula garantiu que impediria um "Argentinazo" no Brasil, em relação ao levante popular que meses antes, no país vizinho, havia levado à destituição do presidente Fernando De la Rúa. Ele se apresentou como o homem que poderia garantir a “ordem” burguesa, e estava determinado a fazê-lo. Em dezembro de 2005, anunciou que estava “progredindo para a descolonização”... pagando toda a dívida brasileira com o FMI, de 15,5 bilhões de dólares. Assim, ele estava à frente de seu par, Néstor Kirchner, que um mês depois concordaria em pagar toda a dívida argentina com o Fundo (9.800 milhões de dólares).

Da mesma forma, o líder petista incentivou a crescente militarização da vida política e social brasileira. Em 2004, a pedido do imperialismo ianque e com o selo do Conselho de Segurança das Nações Unidas, criou uma força militar para "pacificar" as revoltas populares no Haiti: a Mission des Nations Unies pour la stabilization en Haïti (Minustah ), que permaneceu ativa até 2017. O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira estava à frente dessa força eminentemente latino-americana, da qual também participou o governo de Néstor Kirchner. Na Minustah, foram "forjados"um grupo de comandantes militares, apologistas do golpe de 1964, reacionários, que mais tarde transformariam o que haviam "aprendido" no Haiti em operações especiais de repressão contra as favelas do Rio de Janeiro.

Esse núcleo de belicistas militares foi o que manipulou a retirada de Dilma Rousseff do golpe, a subsequente ascensão de Temer à presidência e depois a de outro golpista militar, Bolsonaro, em 2018, prendendo Lula para que ele não pudesse se apresentar como um candidato. Hoje eles compõem grande parte da equipe ministerial de Bolsonaro, e muitos deles foram eleitos para o parlamento, constituindo uma bancada da “bota” militar. A trajetória do próprio Heleno é exemplar: integrante do regime nascido pelo golpe de 1964, após passar pelo Comando da Minustah, promoveria o golpe pseudoparlamentar contra Dilma e depois ingressaria no gabinete de Bolsonaro, primeiro como Ministro da Defesa e depois em outros cargos como Chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro, também teve uma operação de "paz" a seu crédito, nesse caso, em Angola.


Vento a favor, Mensalão e reformas

As primeiras presidências de Lula foram favorecidas pelo "vento a favor" que foi o boom de preços e volumes de exportação de matérias-primas dos países atrasados ​​ (assim como Kirchner e outros governos latino-americanos que se diziam antineoliberais). As maiores receitas resultantes não foram usadas para promover um plano nacional de desenvolvimento, mas serviram para lançar sistemas de corrupção generalizada, como o famoso "mensalão", nome atribuído à distribuição permanente de uma "mensalidade mensal" clandestina entre deputados e senadores relacionados ... e cúmplices. De sua parte, como o próprio Lula apontou, grandes grupos empresariais como Odebrecht e Petrobras se encheram de dinheiro, também por meio da corrupção.

Em relação aos ganhos e condições de vida dos trabalhadores, Lula ousou colocar em prática a primeira reforma reacionária da previdência contra os servidores federais. A redução de suas aposentadorias foi uma reivindicação do FMI para conter o déficit fiscal e garantir o pagamento da dívida pública, e foi a gota d'água que transbordou o copo para produzir uma crise no PT, que culminou no ruptura de uma ala constituindo o Partido Socialismo e a Liberdade (PSOL) à sua esquerda. Lula se gaba de ter tirado milhões da pobreza, quando o que fez foi uma política assistencialista (Bolsa Brasil) semelhante à de Duhalde e Kirchner na Argentina e em outros regimes latino-americanos, diante da ameaça das massas famintas e com fortes tendências à irrupção combativa.

 

“Defensor da democracia”?

Uma das bandeiras com que Lula mais se adornou é a de "defensor da liberdade e da democracia". A verdade é que, para além do palavreado, foi o melhor exemplo de como, no pano de fundo da democracia parlamentar, quem toma as decisões é o grande capital, o imperialismo e as forças armadas – com a corrupção incluída.

Por sua vez, quando a presidente Dilma Rousseff teve que ser defendida da ofensiva golpista, ele se escondeu atrás de manobras e palavras. Enquanto uma presidente eleita por mais de 50 milhões de brasileiros foi derrubada pelo voto de 61 senadores, ele foi incapaz - tendo o domínio da CUT, do Movimento Sem Terra, da UNE, dos Sem-tetos e das grandes organizações de massas - de resistir. Além de alguns atos simbólicos, Lula não convocou para mobilizar e rechaçar o golpe, que acabou sendo realizado sem muita resistência. Ele repetiu a atitude de covardia política de muitos líderes que se proclamaram nacionalistas, a começar por Juan Domingo Perón, que fugiu da Argentina em 1955, quando a classe trabalhadora queria uma greve geral contra o golpe dos gorilas e pedia armas para defender o governo.

Ele teve a mesma atitude pusilânime quando a "Justiça" golpista o declarou culpado de corrupção (sem provas contra ele) e o mandou para a cadeia, anulando seus "direitos políticos" para que não pudesse se candidatar. Parou todas as tentativas de mobilização de massa, entregou as ruas ao golpe de direita e cumpriu "com bom comportamento" a resolução judicial fraudada pelas Forças Armadas, que fizeram sentir suas ameaças sobre o que aconteceria se Lula não fosse excluído da disputa eleitoral.

Após pagar 580 dias de prisão por sua docilidade ao sistema, foi solto pelo mesmo Tribunal Superior que o havia sentenciado, agora declarando "erros processuais" e qualificando-o como candidato. Foi uma medida preventiva contra um vulcão social em ebulição na América Latina (atravessado por grandes revoltas em massa) e no Brasil. A burguesia notou que nas piores condições materiais (prisão), Lula continuou a ter uma conduta “cívica” irrepreensível como defensor da “ordem” burguesa.

 

Ataques e contenção

Temer e Bolsonaro realizaram um forte ataque às condições de vida dos trabalhadores, com dois episódios fundamentais das reformas trabalhista e previdenciária. Junto com isso, avançaram em termos de privatização de empresas estatais e cortes nos gastos sociais. Também no aspecto repressivo, dando maiores margens à polícia e às forças armadas e criando em alguns casos, como no Rio de Janeiro, “milícias” de lumpens protegidos pela polícia.

A pandemia de Covid evidenciou o desastre da saúde pública e a miopia reacionária do presidente Bolsonaro, que descartou a ameaça, se opôs à quarentena e desafiou as vacinas, defendendo “remédios” caprichosos sem qualquer apoio. Quase 700 mil mortes por Covid colocaram o Brasil no topo das vítimas. Por que não houve reação popular a tantos desastres sociais, sanitários e de todo tipo por parte do governo supervisionado pelas Forças Armadas? Porque Lula e o PT criaram um espartilho para impedir qualquer tentativa de resistência geral das massas, usando seu controle burocrático da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras organizações de luta de massas para impedir qualquer irrupção das lutas operárias e populares.

 Em certos momentos houve concentrações, embora de alguns milhares; o “Fora Bolsonaro” foi o slogan de uma dessas campanhas. Como, apesar do boicote e sabotagem do PT e da CUT, essas mobilizações foram crescendo de uma para outra, a liderança lulista redobrou seus esforços e conseguiu desativá-las, temendo que se tornassem um canal de mobilização de massas. Junto com isso, isolou e sabotou as lutas dos trabalhadores, como a forte greve dos trabalhadores dos Correios em 2020.

Lula argumentou que era preciso evitar "provocações" de Bolsonaro. Foi assim que ele cedeu, dando assim a rua às manifestações da direita bolsonarista em várias ocasiões. Ele se opôs ao slogan "Fora Bolsonaro", derivando a rejeição popular do presidente de direita para a apresentação de pedidos parlamentares de impeachment (julgamento político pelo parlamento) sem resultados, a ponto de serem mais de 150 pedidos de abertura de impeachment presentes que dormem o sono dos justos. Em seguida, Lula pretendia direcionar toda a oposição combativa a Bolsonaro para a substituição presidencial de 2022. Assim como o kirchnerismo na Argentina, após a forte irrupção da luta contra a reforma previdenciária em 2017, buscou conter com o slogan “Há 2019” ( para as eleições presidenciais daquele ano), Lula fez o mesmo com 2022. Durante um ano e meio quase todo tipo de movimento de luta de massas foi aplacado e submetido ao isolamento e desgaste, para não "provocar".

Bolsonaro tirou sua “força” da paralisia do movimento de massas. A burocratização das organizações de massa atingiu níveis nunca antes vistos, com a CUT impedindo qualquer coordenação que lançasse o grande gigante social do movimento operário. O conhecido e outrora combativo movimento agrário Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tornou-se um lugar-comum, processando “cooperativas” e reivindicando apenas terras improdutivas que não estão nas mãos dos latifundiários. Na verdade, esse processo remonta à primeira presidência de Lula, com um acelerado processo de cooptação: na época, Lula criou dois ministérios para assuntos agrários, colocando um funcionário encarregado do mais importante, aquele que define política agrária, semelhante ao “agropoder”, e deixando um esquerdista como regente do outro, da “colonização agrária”; Com isso, procurou conter o MST e os movimentos de pequenos agricultores e trabalhadores em um campo onde, em algumas áreas, ainda sobrevivem situações de escravidão ou servidão laboral. Na atual campanha eleitoral, Lula saiu para reivindicar esse novo MST atualizado, propondo que se alguma terra que tem dono for ocupada, ele será despejada pelas forças da "ordem".

O ponto mais recente foram as mobilizações por ocasião dos 200 anos da independência do Brasil. No dia 7 de setembro, três semanas antes das eleições gerais, Bolsonaro organizou grandes mobilizações de massa no Rio de Janeiro, Brasília e outras capitais, com o apoio de propaganda das Forças Armadas. Em vez disso, Lula bloqueou qualquer possibilidade de sair à rua para... "não provocar".

A "frente da esperança" constituída por Lula desenvolveu uma campanha indescritível, na qual se dedicou a se proclamar contra a fissura do "ódio" de Bolsonaro e a favor do "amor" e da volta à "alegria". Os problemas sociais não foram apenas deixados de lado na campanha, mas Lula cansou de repetir que não pretendia revogar os avanços reacionários em temas como a reforma anti-operária ou a reforma previdenciária. Da mesma forma indicou que não tomaria nenhuma medida que não fosse por "consenso" com as câmaras patronais. Essas negociações serão confiadas ao vice-presidente Alckmin... o mesmo que originalmente apoiou as reformas anti-operárias. É colocar a raposa no comando do galinheiro. A burocracia petista da CUT renuncia ao seu papel de organizadora do movimento operário por trás do apoio a esse candidato de direita que virou "Esperança". Quando Lula o apresentou a um plenário sindical como seu vice-candidato, recebeu vaias por sua trajetória. Mas a direção da CUT pode se gabar de ser tolerada.

O centro da campanha eleitoral da "Frente da Esperança" está em levantar o dilema entre fascismo (Bolsonaro) e democracia (Lula). Os problemas sociais e nacionais antiimperialistas foram deslocados pela "luta" pela "democracia", que passaria pelo voto em Lula. Assim como em 1983 na Argentina, quando no fim da ditadura Alfonsín fez a promessa de que todas as "emergências sociais" seriam resolvidas pela democracia no centro de sua campanha, Lula se preocupou em não incitar - nem mesmo com promessas eleitorais - qualquer reivindicação popular. Consciente da explosividade das reivindicações contidas, não quis criar ilusões que pudessem promover, no dia seguinte às eleições, mobilizações das massas trabalhadoras.

 Tampouco houve grandes comícios e mobilizações de campanha, que foram substituídas pelo apoio de artistas conhecidos e pela apresentação de atos de festival relativamente pequenos. O que Lula insistiu foi participar de todo tipo de reuniões com embaixadores e câmaras patronais, dando provas e garantias de que um eventual governo dele não produziria mudanças transcendentais. Ele anunciou que praticamente não haverá nacionalização das empresas privatizadas, nem mesmo diante da entrega da gigantesca Petrobras, que quer manter como empresa "mista". Assim, acabou recebendo o apoio da indústria (Fiesp), bancos (Febraban) e inúmeras câmaras empresariais.

O governo norte-americano de Joe Biden e a maioria das representações diplomáticas europeias também apoiaram diretamente Lula. O imperialismo ianque e europeu e o grande capital desconfiam da capacidade de Bolsonaro de conter e canalizar a crescente pressão popular, exceto pelo perigoso caminho da repressão direta, com a intervenção das Forças Armadas (último recurso em defesa da dominação do Estado burguês). Bolsonaro se alinhou com Donald Trump e mantém essa afinidade; Foi seu homem de governo na América Latina, promovendo os acordos da “mesa de Lima” contra o regime venezuelano e apoiando o golpe de direita que destituiu Evo Morales. Mas aquele golpe Trump-Bolsonarista (também apoiado por Mauricio Macri na Argentina) provou ser uma aventura, causando finalmente uma greve geral e a queda do governo golpista de Jeanine Añez. O imperialismo passa a desconfiar do caráter bonapartista e aventureiro de Bolsonaro e da facção militar que o apoia e co-governa (são mais de 6.000 militares ativos e/ou aposentados que participam de cargos decisivos no Poder Executivo, entre ministros, secretários e outros ). Apoiou abertamente Lula e sua política de Frente Popular, de "colaboração de classes" para bloquear qualquer irrupção independente das massas e defender a "ordem" do Estado burguês. Nas semanas que antecederam a última eleição, uma impressionante campanha publicitária dos principais meios de comunicação brasileiros e estrangeiros se desenrolou em apoio a Lula, levando os pesquisadores a prever que Lula não apenas manteria a diferença de 10 pontos de distância de Bolsonaro (45 a 35% ), mas ia aumentar, impondo a vitória no primeiro turno (para o qual são necessários mais de 50% dos votos).

 

As eleições

Mas os resultados marcaram uma nova realidade. Lula obteve 57.257.473 votos contra 51.071.106 de Bolsonaro. Uma diferença de mais de 6 milhões de eleitores, que deixou Lula a uma distância de mais de 5 pontos (48,43% dos votos contra 43,20%) de seu rival, mas que não lhe permitiu evitar o segundo turno da votação. O mais notável foi que Lula cresceu cerca de 3 pontos (de 45 para 48%) entre as pesquisas pré-eleitorais e a realidade da contagem, mas Bolsonaro aumentou 8 (de 35 para 43%). Mais importante ainda é a nova realidade política no parlamento e nos governadores, com avanços de Bolsonaro e da direita (que conquistou importantes governos estaduais como Rio de Janeiro e Minas Gerais, e disputa outros como São Paulo e Rio Grande do Sul) .

Bolsonaro passou a ter 99 deputados diretos, a maior bancada da Câmara, que, juntando seus aliados, dá uma forte maioria de 273 parlamentares, contra 138 de Lula e seus associados. Em Senadores, por outro lado, foram eleitos 14 bolsonaristas contra 8 lulistas e 5 independentes.

Ministros bolsonaristas, conhecidos reacionários que se demitiram de seus cargos para se apresentar como candidatos, foram eleitos majoritariamente para o parlamento, como o atual vice-presidente Hamilton Mourão, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (acusado de cumplicidade no desmatamento patronal da Amazônia) e o general Eduardo Pazuello, que atuou como Ministro da Saúde durante a pandemia com os resultados catastróficos mencionados acima. As Forças Armadas mantêm um forte bloco de legisladores, assim como a direita do agropoder e do bloco evangélico – o chamado “3B”: Botas, Boi e Bíblia, tripé basal da ascensão de Bolsonaro.

Se Lula vencer no dia 30 de outubro, estará fortemente condicionado e terá que conviver com a direita, sem excluir a maioria de Bolsonaro no Congresso e à frente de Estados importantes e estratégicos.

 

Campanha e análise

Vinte anos depois de sua ascensão ao governo, Lula volta às eleições presidenciais liderando uma "frente ampla" com setores da burguesia, que vão da centro-esquerda à centro-direita (incluindo as esquerdas).

Alguns analistas políticos e de esquerda atribuem a ascensão imprevista de Bolsonaro à existência de uma corrente intrinsecamente conservadora e reacionária em uma grande massa da população. Assim acusam parte do povo do que é consequência direta das ações políticas de Lula, do PT e da frente de centro-direita que o acompanha. O povo não foi convocado e muito menos mobilizado para lutar pela recuperação das conquistas arrebatadas por Temer e Bolsonaro, pela revogação das reformas reacionárias trabalhista e previdenciária, ou pela expropriação da Petrobras, cujos acionistas privados estão se enchendo de dinheiro como nunca antes,  alimentados por aumentos de preços pagos pelo povo e por subsídios de "consumo" do governo. Nem pela expropriação dos monopólios privados de saúde e a constituição de um sistema de saúde estatal que deixe para trás o desastre causado pelo massacre da pandemia do Covid e possa enfrentar com eficiência os males que atingem especialmente os pobres (chagas, hepatite, dengue, zika) . Ou pela revogação da reforma constitucional de 2016, que bloqueia o aumento das despesas sociais (habitação, educação e saúde) no orçamento nacional (e na qual o STF acaba de apoiar para rejeitar como "inconstitucional" a fixação de um piso salarial dos trabalhadores hospitalares).

Na semana anterior às eleições, as câmaras empresariais manifestaram preocupação de que Lula anulasse essa lei, que visa conter o déficit fiscal em detrimento do padrão de vida das massas. Para afugentar qualquer fantasma, o candidato disse que pretendia colocar Henrique Meirelles em seu gabinete, herói do capital financeiro, foi ministro do governo golpista de Michel Temer e promotor dessa lei de gastos antissociais. Este anúncio, publicado em primeira mão pela coluna Radar Econômico, “deixou o mercado animado”, a ponto de o principal índice de ações, o Ibovespa, “atingir o pico de 110 mil pontos, uma alta de mais de 2%, aproximadamente uma hora depois que a notícia foi divulgada, refletindo o otimismo com o nome.”

Mas em segundo lugar, você tem que escapar do impressionismo. A eleição foi altamente polarizada entre Lula e Bolsonaro (91,6% entre eles), deixando o terceiro e quarto candidatos com apenas 4,16% (Simone Tebet, do Movimento Democrático Brasileiro) e 3,04% (Ciro Gomes, do Partido Democrático Trabalhista). Bolsonaro sugou todos os votos das forças de direita que regrediram notavelmente e estão em estado de desintegração.

O atual presidente, por outro lado, implementou - no período pré-eleitoral - um amplo programa previdenciário-social concedendo um aumento dos subsídios aos desempregados em mais de 50%, eliminando impostos sobre o consumo e baixando o preço da gasolina e dando subsídios a taxistas e caminhoneiros, entre outras medidas. Para tanto, deve ter violado as limitações anti-orçamentárias, com uma emenda especial, que a “Frente da Esperança” de Lula foi obrigada a votar, mas denunciando que se tratava de medidas “demagógicas”.

Agora, na campanha pelo segundo turno, Bolsonaro voltou a enviar novos projetos com conteúdo social, como a criação de um 13º pagamento (bônus) do subsídio para mães desempregadas, que a frente Lulista deveria mais uma vez ter apoiado . Também concedeu outros subsídios, como o consumo doméstico de gás, e incorporou quase meio milhão de brasileiros a mais nos planos do Auxílio-Brasil (uma extensão que o governo kirchnerista se recusa a fazer com seu equivalente argentino, apesar do aumento da miséria social). Bolsonaro declarou, demagogicamente, que a campanha eleitoral lhe permitiu tomar nota da difícil situação do povo, que agora tentaria reverter.

De sua parte, Lula não cogita nenhuma proposta mobilizadora. Uma parte de sua campanha atual está focada na luta para conquistar o voto evangélico mostrando que ele “não é o diabo”. Lula afirma em vários de seus últimos vídeos de campanha que é guiado por Deus: "Eu não teria chegado onde estou se não fosse a mão de Deus dirigindo meus passos e guiando meu comportamento". A “mão de Deus” o leva a levantar um “programa” gatopardista, para mudar algo superficial para manter de pé as conquistas reacionárias impostas por Temer e Bolsonaro?

 O nacionalismo burguês e a frente popular de centro-esquerda em nível continental contam com o fato de que a eventual vitória final de Lula acrescentaria o Brasil à "onda rosa" dos governos populares frentistas de conciliação de classes (Boric no Chile, Petro na Colômbia, Castillo no Peru , Fernández na Argentina) que vem substituindo os regimes de direita e neoliberais no continente. Mas o neoliberalismo está dentro da "Frente da Esperança" Lulista e de seu próximo governo. No geral, essa "segunda onda rosa" é muito mais conservadora que a primeira; incluindo especialmente Lula, que foi o protagonista da primeira e agora evidencia, e mostrará com mais clareza, o papel desmobilizador desempenhado pela frente de conciliação de classes, a chamada "frente popular", que algema a luta dos trabalhadores e dos explorados com sua subordinação à burguesia pseudo-progressista e/ou “democrática”.

A centro-esquerda oportunista usará o espantalho da ameaça fascista o tempo todo para deter a organização e a luta independente das massas e subordiná-las a um eventual governo de frente populasr. O PSOL, que rompeu com o PT e Lula há 15 anos por seu direitismo, deu uma guinada que o reconduz à integração com o lulismo. Decidiu ingressar na Frente da Esperança, apoiando a candidatura de Lula e recusando-se a apresentar seu próprio candidato independente. E isso não só na eleição presidencial: na importante eleição para o governo de São Paulo, deu um passo atrás com a candidatura de Guilherme Boulos (que havia tido alta votação nas eleições municipais há dois anos), permitindo sua substituição por Fernando Haddad do PT, que entrou na votação, mas como segundo candidato, com bem menos votos.

O PSOL, outrora tido como modelo de "partido amplo" por setores da esquerda internacional, está culminando sua trajetória basicamente eleitoral, juntando-se às listas da Frente da Esperança com Lula. A esquerda que se diz socialista e até trotskista, e que permaneceu por uma década e meia (fazendo uma espécie de entrismo) dentro do PSOL, acaba não rompendo com isso. Uma parte (integrante da Liga Socialista Internacional, do Movimento Socialista dos Trabalhadores -MST) apresentou algumas candidaturas nas listas do PSOL. Outro setor (inscrito na Unidade Internacional dos Trabalhadores) apresentou candidaturas no último momento no Polo Socialista e Revolucionário, mas permanece dentro do PSOL; um oportunismo eleitoralista que foi permitido pelo construtor do Polo Socialista e Revolucionário, o PSTU. A pequena corrente Socialismo e Barbárie, aderente ao Novo Mas argentino, aderiu ao Polo caracterizando que o problema central era derrotar Bolsonaro, com o qual conclamou indiretamente o voto em Lula.

Vinte anos após a primeira ascensão de Lula ao governo, a história se repete, mas de forma mais bastarda. Se o petista vencer, o neoliberalismo estará diretamente dentro do governo.

A necessidade de lutar pela independência política da classe trabalhadora e dos explorados não só da direita, mas também – e fundamentalmente – de Lula e de um eventual governo de frente popular, é essencial. Trata-se de lutar para que os sindicatos e organizações de massas rompam com sua subordinação ao PT e às variantes estatal e patronal, pela independência política e organizativa da classe trabalhadora e dos explorados, com uma visão estratégica da luta por um governo dos trabalhadores. Preparar -a partir de agora- um congresso operário que estabeleça a plataforma de luta dos explorados e avance para um plano de luta nacional com greves e mobilizações. A frente popular de conciliação de classes leva as massas à derrota e à entrega de seu programa reivincativo. As demandas das massas serão impostas pela ação direta dos explorados.