domingo, 7 de janeiro de 2018

A REBELIÃO NO IRÃ



 Jorge Altamira, da direção nacional do Partido Obrero da Argentina e da Coordenação para a Refundação da Quarta Internacional (CRQI)



Embora tenha surpreendido, inclusive a maioria dos observadores, os levantes populares no Irã, nesta última semana, estavam potencialmente previstos na crise do regime político que tem se desenvolvido em quase duas décadas. A orientação nacionalista do regime dos aiatolás, e seus choques contra o imperialismo, ocasionaram numa política de autarquia econômica que esgotou rapidamente suas possibilidades e provocou um freio no desenvolvimento das forças produtivas.
O desemprego e a inflação assumiram níveis cada vez maior, e inclusive com consequências catastróficas para a massa mais pobre da população. A saída do “populismo” e a liberalização econômica se tornaram a pedra de toque entre a maior parte da burguesia e o aparelho estatal controlado pelas camarilhas clericais e o aparelho militar (a guarda revolucionária). Esta crise deu lugar a levantes populares em 2009, e a mudanças políticas sucessivas, que outorgaram a vitória formal ao grupo ‘renovador’ ou aos ‘liberais’. Em 2009, a agenda dos levantes foi ocupada por uma agenda política com forte componente laico - incompatível, em última instância, com o regime teocrático. No Irã, um conselho de aiatolás designa a maioria dos cargos parlamentares, e dirige as forças armadas e de segurança, ou seja, que o país funciona como uma autocracia com enfeites constitucionais, e paga, em consequência, quase todo o custo da manutenção da casta parasitária. A vitória eleitoral dos liberais em duas ocasiões não  deu lugar, no entanto, a nenhuma modificação do regime - tampouco com o atual presidente, Rouhani, reeleito em maio passado com 57% dos votos.

A crise internacional
A saída “liberal” à inflação e à estagnação “populista” implicou, como no mundo todo, uma política de “ajuste” e de “realismo econômico” (tarifaços e pagamento de subsídios ao consumo), o que agravou a miséria popular. A expectativa de obter financiamento e investimentos internacionais ficou frustrada, apesar de que esta foi a grande contrapartida que prometeram os EUA, a UE, Rússia e China, a renúncia, por parte do Irã, a prosseguir com seu desenvolvimento nuclear. O Irã necessita US$ 1 bilhão para manter seu nível de produção atual. As sanções econômicas contra o Irã foram bastante escamoteadas; Trump tem adotado novas sanções, em violação ao acordo, e inclusive ameaçando com penalidades à petroleira francesa. Satisfeitos pelos convênios assinados com o Irã, a Arábia Saudita e os Emirados do Golfo, por outro lado, tem desatado um ataque violento contra o Qatar, pelos investimentos que este Emirado compartilha com o Irã na jazida de gás mais importante do planeta, e estão desenvolvendo um plano de guerra em acordo com o Israel e os EUA, para destruir a influência do Irã no Iêmen e no Líbano. O novo hierarca saudita chegou a sequestrar ao primeiro ministro libanês para impor um despejo do Hezbollah do governo do Líbano. Trump não tem retribuído ao Irã o papel que tem desempenhado na derrota do Estado Islâmico no Iraque, e agora o desarmamento parcial das milícias xiitas iraquianos; tampouco a “pacificação” da Síria, que permitiu tirar do atoleiro a intervenção militar norte-americana. Os acontecimentos iranianos levantaram não só uma crise política extraordinária, mas também uma crise política internacional.
A faísca que ascendeu o rastilho de pólvora foi o aumento das tarifas dos serviços públicos e do preço dos ovos, e a negligência perante os desastres sociais produzidos pelos vários terremotos. Subiu a tarifa da gasolina, que se converterá em maior carestia. Também está produzindo demissões por fechamentos de empresas, e bloqueios de estradas e ocupações de empresas. Faliram, além disso, vários bancos e “entidades” financeiras não reguladas, e que se encontram em poder de setores do próprio aparelho estatal. Houve uma confiscação de depósitos e poupanças. Anuncia-se no plano econômico um começo de colapso com consequências que não se podem prever. O movimento de protesto não reconhece uma liderança operária, mas ainda não se pronunciaram os trabalhadores petroleiros.

Reivindicações
A explosão começou em Mashhad, o feudo do opositor ‘populista” de Rouhani, que incentivou os primeiros passos da revolta, mas rapidamente perdeu o controle desta. O fogo se alastrou no resto do país. Esta rebelião se diferencia dos levantes de 2009, em aspectos importantes: sua base é a população mais pobre, não a classe média; as reivindicações econômicas ocupam um lugar maior; constituem um ataque ao regime, incluindo até o governo "liberal" da “reforma permanente”; carece de uma direção política estabelecida com anterioridade. Rouhani pretendeu, num começo, canalizar o movimento com promessas de “correções”. A cúpula clerical ordenou uma repressão limitada às forças de segurança. Os “reformistas” e os “conservadores” ou “populistas” fecharam fileiras, com a consciência de que qualquer ruptura, nesta etapa, daria um sinal à revolução. As massas em rebelião têm passado da afronta econômica à reivindicação política, com palavras de ordem contra o regime no seu conjunto. Responsabilizam ao conselho de aiatolás e seu aparelho militar por monopolizar a riqueza nacional às custas do povo. Deste modo, o setor “confessional” da população se tornou no vetor da luta pela república - não islâmica, portanto, laica. Isto está ocorrendo no país mais politizado do Oriente Médio, com uma importante tradição revolucionária (1953, contra o golpe da CIA; 1979, a revolução que derrotou a monarquia).
Dada a experiência recolhida desse esmagamento das revoluções árabes de 2011, alguns olham nisso tudo a mão do imperialismo. Após o apoio de Trump, Netannyahu e o saudita Bin Salam, consideram-na um complô longamente preparado. Mas, como o explica um especialista para nada suspeito de simpatias pelo regime, “os iranianos tem apoiado a intervenção do seu país na Síria e no Iraque. Após a tomada de Mosul, o Estado Islâmico havia ameaçado em invadir Mashhad”, o berço da rebelião em curso. As palavras de ordem contra o aparelho militar obedecem à corrupção, não a uma oposição à política internacional (Le Monde, 3.1.18). O "apoio" dos Trump e seus sequazes reforçam o sentimento de independência nacional, e constituem essencialmente uma provocação política contra a rebelião, inclusive contra os governos da EU, que tem se limitado a exigir ao governo iraniano “a defesa dos direitos humanos”.
A questão da direção política desta rebelião será resolvida com o desenvolvimento dos acontecimentos. O prognóstico a respeito só pode ser condicional; o apoio em forma incondicional das ações pelas reivindicações populares e o repúdio e rejeição da repressão, não devem se confundir com o apoio a uma direção política que não conhecemos. O regime deverá operar uma virada de política econômica, para não cair num impasse mortal. A possibilidade, no entanto, de que o aparelho clerical procure utilizar a repressão para liquidar diferenças com o “reformismo”, ou seja, produzir um golpe de estado. Haverá um novo desenvolvimento da crise internacional, dado que os acontecimentos iranianos são atribuídos à ruptura, por parte de Trump, do bloco que negociou o acordo político-econômico-nuclear com o atual governo iraniano.
Fica claro que se abre, no Irã e em todo Oriente Médio, uma nova etapa política, que haverá de remanejar todas as questões que não puderam ser resolvidas pelo esmagamento das revoluções árabes.