Jorge Altamira
A
vitória eleitoral do Syriza, no dia 20 de setembro passado, provocou
rios de tinta. De um modo geral, as análises oscilam entre a
denúncia da 'traição' do Syriza, por um lado, e o prognóstico,
pelo outro, de que esta “traição” teria pernas curtas. Isto
porque a aplicação do plano de ajuste e austeridade imposto pela
Troika é inviável ou porque, inevitavelmente, deverá provocar
lutas mais intensas e levantamentos populares. Estes ângulos do
balanço deixam de lado a questão principal.
A
vitória do Syriza se distingue porque tem sido o resultado de um
malabarismo politico poucas vezes visto. Poucas semanas antes o
eleitorado havia votado um rotundo NÃO ao pacote de resgate da
Troika, e o fez nas condições mais difíceis que se possa imaginar,
em meio a um “corralito” bancário e uma sabotagem financeira
aberta feitas pelo BCE. Esta circunstância extraordinária
demonstrou que a massa majoritária dos votantes era perfeitamente
consciente do alcance de seu voto: a ruptura com a eurozona e a
inevitabilidade da adoção de medidas anticapitalistas. O que ocorreu
posteriormente é fartamente conhecido: Syriza adotou o programa dos
credores, perdeu a maioria parlamentar, chamou eleições antecipadas
e terminou ganhando com toda comodidade.
A
chamada “traição” do Syriza é tão evidente como relativa. Em
primeiro lugar, porque nunca ocultou sua posição de apoio
incondicional à União Européia e ao sistema euro, e porque se
trata de uma organização politicamente democratizante, ou seja, que
adota as condições do Estado capitalista. A isto temos que agregar
a renúncia em formar um governo independente e estabelecer uma
coalizão com a direita clerical e militarista. Seu governo foi um
constante recuo diante da pressão do eurogrupo, acompanhado dos
pagamentos dos vencimentos da dívida externa, inclusive ao preço de
confiscar os saldos líquidos de diversos organismos estatais ou para
estatais, e da aceitação em grande parte das privatizações
exigidas pela Troika. Finalmente, o próprio plebiscito foi
claramente uma manobra de alcance limitado, pois tirava do governo a
responsabilidade de rejeitar as propostas do eurogrupo e porque se
reduzia a rejeição de uma proposta circunstancial. Foi a intensidade
da mobilização popular pelo NÃO o que deu ao plebiscito um caráter
excepcional, de nenhuma forma a proposta do Syriza.
Syriza
não recolheu somente o apoio eleitoral da massa popular que votou
pelo NÃO, após repudiar seus termos, o qual é por si mesmo
impressionante. Conseguiu-o, além disso, após atravessar uma forte
crise em sua formação política, que foi abandonada por grande
parte de seu Comitê Nacional, que passou a formar a Unidade Popular,
com o apoio inclusive de correntes externas ao Syriza. Unidade
Popular converteu-se no porta-voz do NÃO e do chamado “programa
original”do Syriza, votado três vezes: em maio, junho de 2012 e
janeiro de 2015. Todas essas credenciais não lhe bastaram para
ingressar nem sequer no parlamento, pois obteve uma votação
inferior ao 3% exigido por lei. Em poucas semanas, Syriza foi
plebiscitado duas vezes: uma vez pelo NÃO e em seguida pelo SIM. As
denúncias de “traições”, os prognósticos de fracasso não
chegam para explicar o ocorrido e caracterizar a relação de forças
presentes.
A
travessia política do governo Syriza constitui um caso típico de um
governo kerenkista. A burguesia não pode governar por meio de seus
partidos tradicionais, nem o proletariado é capaz de derrubar o
poder capitalista. Se trata, por certo, de um fenômeno transitório,
porém com uma ressalva: sua duração e sua capacidade de ação
pode ser prolongada e é relativamente consistente, e pode ser uma
ponte ao restabelecimento de uma forma tradicional de governo
burguês., não necessariamente uma transição a um governo dos
trabalhadores. Este último depende que a classe operária
converta-se em revolucionária a partir de sua experiência política.
Os resultados eleitorais mostram que a alternativa operária e
socialista está longínqua. A vitória do Syriza é, acima de tudo,
uma derrota política contundente da vanguarda operária e da
esquerda combativa ou revolucionária. Nenhuma recaída na crise
social pode, por si mesma, superar esta crise de direção; ao
contrário, poderia reforçar uma direitização do kerenkismo ou sua
substituição pela direita. No marco da bancarrota capitalista
mundial, o que ocorreu na Grécia antecipa os grandes problemas que
esta bancarrota coloca para a esquerda revolucionária. A
direitização declarada do Podemos, na Espanha, ainda que muito
longe da tragédia grega, é outra amostra do destino das convulsões
populares que não são interpretadas e conduzidas pela esquerda
revolucionária.
Tudo
isso leva ao ponto crucial do programa de transição, ou seja da
passagem que vai da bancarrota capitalista e a reação popular ao
poder dos trabalhadores. O programa de transição deve ser
entendido, sobretudo, como um programa de poder, e de nenhum modo
como uma coleção de consignas isoladas, frequentemente sindicais. O
período que vai desde maio de 2012, quando se produz a grande
guinada política das massas, até o plebiscito do NÃO, em julho de
2015, colocou diferentes crises de poder, desde a proposta de um
governo de esquerda, no inicio da etapa. O novo governo de
colaboração de classes Syriza-Anel atravessará com toda segurança
novas crises políticas, alguns meios apontam uma fração chamada
“dos 53” como a nova oposição no interior do governo. Os novos
cortes sociais do pacote da Troika provocarão novas lutas.
Após
as convocatórias das recentes eleições, a esquerda opositora ao
Syriza, incluída a própria Unidade Popular, teve que improvisar
programas políticos, que não puderam superar, no entanto, o ponto
do que fazer frente ao euro e a eurozona. De um lado, Unidade Popular
propôs o retorno ao dracma na perspectiva de suscitar uma improvável
reativação capitalista, no estilo da América Latina entre 2003 e
2009. De outro lado, os adversários da recuperação capitalista
sustentam que na ausência de uma revolução simultânea na Europa,
um governo dos trabalhadores deverá restabelecer uma moeda nacional,
o tema que mais pesa na consciência popular. Para sair desta etapa de
refluxo que provocará a derrota política sofrida pela vanguarda
operária, e para preparar as condições para um ascenso político
vitorioso, é necessário um programa claro: Uma Tese de Abril para
as condições gregas.