Osvaldo Coggiola
Os projetados vinte anos de governo petista, que alguns sociólogos de
plantão chegaram a qualificar como “lulismo”, ou reedição “modernizada” e
“democrática” dos vinte anos varguistas, ameaçam afundar antes de atingir a
projetada maioridade penal brasileira (16 anos). Serão, portanto,
inimputáveis. O que não deixa de evocar
um pensador alemão, anterior à sociologia weberiana, que corrigiu Hegel
apontando que a história, de fato, se repete duas vezes, a primeira como
tragédia (1954), a segunda como farsa (2014). Os sessenta anos do suicídio
getulista, porém, não colocam em segundo plano o cinquentenário do pesadelo que
se abateu sobre o país em abril de 1964, explicitamente revivificado pela
“sonhática” (seria melhor dizer “pesadelática”) Marina Silva, em 2003 declarada
emblema, e em 2014 detonadora, do “sonho” petista, que ameaça se transformar
num “despertar” evangélico/militar/fascistóide.
Que algum sociólogo pré-dialético (e antilógico) qualifique isto de “retrocesso”,
convidando-nos a pensar a história como uma espécie de linha reta na qual se
pode ir “pra frente ou pra trás” (mas evitando, em qualquer hipótese, os saltos
e quebras da linha, especialmente esses saltos no vazio comumente chamados de
revoluções) revela o patamar miserável em que foi posto o pensamento social e
de esquerda brasileiro pelo efeito acumulado de doze anos de carguinhos e cargões, viagens internacionais sistemáticas, hotéis cinco
estrelas e vida boa. O “sonho petista” continha, como tudo nesta vida, o germe
de sua própria explosão, mas, como os dialéticos, de Platão em diante, se
encarregaram (nas mais das vezes, inutilmente) de precisar, a incontornável
contradição do real não significa antecipar qual será o sentido de sua
explosão, que depende não de leis inexoráveis supra-históricas, mas da vontade
humana consciente e organizada (a república monárquica dos reis filósofos para
Platão, o príncipe iluminado e consciente da Razão de Estado para Maquiavel, o
Estado Civil de reconhecimento universal para Hegel, o partido político
revolucionário da classe operária para Marx).
A linha sociologética antidialética inspirou o novo motto principal da campanha eleitoral de Dilma Rousseff e seus
marqueteiros que, diante da brechtianamente resistível ascensão eleitoral de
Marina-Ui, acharam no fundo de seus cérebros de passarinho (com o devido perdão
das aves) o novo grande argumento político: convidar o povo brasileiro a evitar
a “aventura”, o “salto no vazio”, representado por uma eventual vitória
eleitoral de Marina Silva. Que o partido outrora autoproclamado portador do
“sonho” e da “aventura”, e do “socialismo vindo de baixo”, tenha se
transformado no partido do pé no chão e do Bolsa Família (vinda de cima)
demonstra, não seu conquistado “realismo” (elogiado por editorialistas formais
ou informais da grande imprensa, Veja
incluída, e cantado em verso e prosa por sociólogos e cientistas políticos
de todas as pós-modernidades imagináveis), mas, ao contrário, um irrealismo
digno de entrar em concorrência com o festival de idiotices proclamadas pelos
“democratas” (incluídos os socialdemocratas) e os cientistas sociais da época,
diante da ascensão de Mussolini (que, como Marina, iniciou sua ascensão
política nas fileiras do partido socialista-ônibus da Itália) ou de Hitler (que
não precisou desse expediente, pois o dito cujo, o SPD de Ebert [que hoje
empresta seu nome a uma fundação que financia petistas, petólogos e cutistas] e
Noske, lhe aplainara o caminho, assassinando os únicos que poderiam tê-lo barrado,
os espartacistas ou comunistas, Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Leo Jogiches,
só para ficar nos mais conhecidos).
A linha auxiliar do sistema de marketing a que ficou reduzido o “sonho
petista” invadiu e inundou as redes ditas “sociais” com sensacionais desvendamentos da real natureza da
candidatura de Marina: antigay (pois oposta ao matrimônio civil de pessoas do
mesmo sexo), antifeminina (pois oposta ao direito de aborto, em nome de Deus,
seja ele evangélico, católico ou da religião que aparecer com algum caudal de
votos), antilaica (pelas mesmas razões precedentes), misógina (em defesa do
homofóbico Pastor Feliciano - o possuidor da “cura gay” - na presidência da
Comissão de Direitos Humanos na Câmara, pela sua defesa dos evangélicos contra as
supostas perseguições de que são objeto), para não falar de sua proximidade com
a herdeira do Itaú, e por ai vai (o staff ex petista de Marina se encarrega
cotidianamente de fazer crescer essa lista, sem limites à direita).
Acontece que isso não é a revelação científico/dialética de alguma
essência por trás da aparência, pois Marina Silva não oculta o caráter
ultrarreacionário de sua candidatura, ao contrário, faz questão de proclama-lo urbi et orbi como argumento dirigido ao
eleitorado conservador, que é apenas um de seus alvos. O único trabalho
adicional que teve Marina, depois da morte de Eduardo Campos, foi o de
explicar, de um modo que, mais que beirar o ridículo, ultrapassou consciente e intencionalmente o
ridículo, foi o de explicar, repetimos, que os fragmentos do programa do PSB (o
programa de sua chapa com o finado governador pernambucano) relativos a essas
questões que não eram explicitamente reacionários, deviam sua existência a
erros tipográficos ou de transcrição da comissão partidária encarregada do
programa, um argumento diante do qual até Tiririca coraria de vergonha. O PSB e
seu programa ficaram reduzidos a papel higiênico.
E, como diria o velho Mussolini, me
ne frega: com o programa “progressista” do PSB e a candidatura presidencial
do governador do estado natal de Lula, devida ao não partido representado por Marina, a chapa marinatta patinava entre 8 e 10% das intenções de voto, com
tendência a cair. Eliminado o primeiro obstáculo (não por um debate partidário
interno do PSB, mas pelas ordens dadas por Marina diretamente na TV, com algum
auxílio de seus assessores, e depois de um chute no traseiro dos assessores de
Campos); e transformado o segundo em mártir aéreo (graças a um precário avião
adquirido ilegalmente, mas tanto faz: não falta muito para que se afirme que
seu decesso aconteceu no firmamento para encurtar seu caminho ao céu, de onde
vela e reza, como bom socialista, pelo futuro do “novo Brasil”) a nova chapa
peessebista pulou para cima em duas semanas até bater em 35% das intenções de
voto, conquistando um 25% suplementar (o que equivale a pouco mais de 36
milhões de votos), derrotando Dilma no segundo turno, e reduzindo o fantasma
tucano, invocado nas eleições precedentes pelo PT para chamar ao “voto útil”,
às suas reais dimensões eleitorais: 14%, com tendência para uma queda ainda
maior até outubro.
O último prego no caixão do sonho foi cravado pela própria Marina, ao
proclamar alto e bom som (e, presumivelmente, sem consultar ninguém além de seu
círculo íntimo) sua oposição à revisão da Lei de Anistia, isto é, propor a
expedição de um certificado de inocência e impunidade eternas para assassinos,
torturadores e ladrões em grande escala do regime militar, ou seja, que nada
será feito contra as consequências, bem presentes até hoje (a começar pela
famigerada PM), de 21 anos de arbítrio armado elevado à categoria de Razão de
Estado. O Clube Militar, que andava esquecido, ou melhor, escondido nos últimos
tempos, saiu de sua toca para proclamar em Marina Silva seu “fio de esperança”,
lhe oferecendo em bandeja de prata a última fatia do eleitorado que ela
pretendia abocanhar: a dos saudosistas da ditadura militar. Com certeza, isto
não significará destituir ou mandar às favas a Comissão da Verdade, que poderá
continuar a trabalhar, e produzir finalmente um belo volume de histórias de
crimes e de horror, que será devidamente arquivado nas estantes da Biblioteca
do Senado. Página encerrada: como diz Marina, o segredo da vida é olhar para
frente; o passado é só matéria para historiadores e proprietários de casas
funerárias.
Também não significa que Marina deixe de se proclamar ambientalista e
defensora dos povos da floresta, invocando seu próprio lendário passado.
Proclamando como seu candidato a vice um agente direto do agronegócio, isto é,
um inimigo da reforma agrária e um aliado dos desmatadores e perseguidores (ou
matadores, sem o prefixo “des”) dos povos da floresta. O sindicato de
trabalhadores rurais de Xapurí, o sindicato de Chico Mendes, já denunciou, em
termos além de qualquer dúvida ou ambiguidade, a mentira e o caráter
reacionário da candidatura de Marina, oferecendo um fundamental ponto de apoio
para uma denúncia classista desta, mas sem a projeção midiática da campanha
eleitoral daquela.
O outrora fascismo “verde” tupiniquim, o integralismo, também cultivava
a demagogia florestal e até a apologia dos povos indígenas (anauê!), supostos portadores de uma
“brasilidade” que os “camisa verde” opunham ao internacionalismo
comunista-trotskista (que, lembremos, porque será cada vez mais necessário
lembrar, os pôs para correr manu militari,
numa bela tarde de outubro de 1934 na Praça da Sé, na que foi chamada “a
revoada das galinhas verdes”, a melhor tradição da esquerda brasileira). Mas o “fenômeno Marina” não é uma decorrência
tardia da prédica doutrinária de Plínio Salgado, daquilo que J. Chasin chamou
de “forma de regressão do capitalismo hiper-tardío”. A sua (de Marina) não
passa de uma forma hiper-tardía e barata de oportunismo do tardo-capitalismo
dos BRICs. Sua ascensão eleitoral só é surpreendente para quem se deu ao
trabalho de ignorar os 20 milhões de votos (18% do eleitorado) que obteve nas
eleições presidenciais de 2010, usando, como hoje, uma sigla eleitoral
emprestada.
Seu próprio “partido” foi barrado pelo TSE do PT pelo mesmo motivo que,
se usado universalmente, barraria um enorme percentual dos partidos políticos
brasileiros, em especial os “nanicos de direita” (e até algum “de esquerda”): a
falsificação de fichas de filiação. Na Folha
de S. Paulo, há coisa de um ano, um escritório de advocacia brasiliense deu
inclusive a conhecer suas tarifas para legalizar qualquer sigla
político-eleitoral que lhe fosse posta em cima da mesa, acompanhada dos R$
400-500 mil que abririam, para o grupo empreendedor que se candidatasse, o “fundo
partidário” e o rendoso (e crescente) negócio do aluguel da sigla (para ter uma
ideia de seu tamanho, baste saber que os gastos declarados com campanhas eleitorais quintuplicaram desde 1994,
crescendo de R$ 352,6 milhões em 2010, para... R$ 916 milhões em 2014: vivemos,
sem dúvida, num regime democrático, onde o gasto mínimo para se eleger um deputado supera um milhão de reais).
A “rede” de Marina não é o embrião de um partido fascista, ou de um
NSDAP (Hitler) “verde” na Terra da Santa Cruz. Não tem ideologia nenhuma, e
colhe seus temas segundo o aconselha a trajetória errático-oportunista de seu
reduzido núcleo central. Se alguma analogia histórica fosse possível, seria a
de uma versão degradada da “Sociedade de 10 de dezembro” de Luis Bonaparte (Napoleão
III), também um aglomerado heteróclito oportunista com uma vaga origem de
esquerda, que, nas condições de crise e vazio de poder decorrentes da crise de
1848, conseguiu governar França durante 22 anos (e convém lembrar que sua
história terminou com a Comuna de Paris), as duas décadas concedidas pela
história aos ditadores, o que não impediu Marx de caracteriza-lo de farsa. A
“rede” (com minúscula) é a farsa de uma farsa, uma farsa ao quadrado.
Seu “programa” consiste em prometer a manutenção das “conquistas”
precedentes (a estabilidade monetária tucana e os programas sociais petistas)
com alguma atenção ao meio ambiente e eliminando a endêmica corrupção do Estado
brasileiro, mas, deliberadamente, sem a menor proposta política para realizar
esses objetivos, em condições em que o Brasil enfrenta a perspectiva de uma
bancarrota financeira, de uma crise fiscal, de uma crise (apagão) energética e
até hídrica, de uma inflação crescente acompanhada de taxas de juros
estratosféricas, e de uma degradação sem par (isto é, pior do que a atual) do
meio ambiente e da vida urbana, que foram o detonador das grandes mobilizações
de junho-julho de 2013.
Sua única “proposta concreta” é a de um governo “técnico”, isto é, um
“governo com as melhores cabeças do país”, qualquer que seja sua origem
político-partidária ou não partidária, o que é: A) Uma manifestação de
indigência intelectual e até mental; B) Um convite velado e multilateral à
corrupção, pois não propõe porcaria nenhuma para eliminar sua base
institucional (todas as benesses e licenças financeiras concedidas ao alto
escalão executivo, legislativo e judiciário), mas apenas substituir a vigente
(enorme) camada de administradores federais petistas por outra, abnegada, não
já a um partido, mas a uma pessoa; C) Uma afirmação, decorrente da que precede,
da tendência para um poder presidencialista – bonapartista, também endêmica no
Brasil (o país dos decretos-lei e das “Medidas Provisórias”) o que, no caso
presente, significa um governo de “mão firme (dura)”, com uso de todos os
instrumentos do Estado (inclusive, e principalmente, os herdados da ditadura
militar) contra as lutas de classe (dos operários, dos camponeses, da
juventude), contra as lutas sociais em geral, e contra todas as causas
progressistas em todos os âmbitos.
Que semelhante engendro (um não partido + uma não proposta) encabece as
sondagens eleitorais é um índice certo e definitivo da falência do sistema político brasileiro e de seus partidos, isto é,
da crise terminal da chamada “transição política”, a transição intransitiva do
regime militar para uma pseudo democracia política. A tendência bonapartista
seria também encampada pelo PT se este, en
desespoir de cause eleitoral, lançar a cartada de propor e promover Lula
como chefe da Casa Civil (transformado numa espécie de primeiro ministro), como
garante do poder e governo de fato, transformando Dilma numa rainha de
Inglaterra com data de validade, uma “aventura” híbrida de presidencialismo
parlamentarista (ou parlamentarismo presidencialista) perante a qual qualquer
governo Marina pareceria uma expressão da sensatez política.
Quais são as razões do sucesso eleitoral de Marina (sucesso
inquestionável, mesmo que o “voto medo”, ora proposto pelo PT em substituição
ao “voto útil”, acabe levando a melhor em outubro ou novembro)? As cabeças dos
analistas da mídia brasileira foram chamadas a interessar-se neste mercado
aberto pelo novo arcano político do país, e conseguiram, façanha difícil, bater
os recordes precedentes de vulgaridade política e intelectual. Vejamos como.
Marina teria ido às alturas nas sondagens eleitorais empurrada pelo
efeito político-religioso da morte de Eduardo Campos (por que não consegue o
mesmo Dilma que, além de presente no velório, também esteve na inauguração do
Templo de Salomão da empresa evangélica de Edir Macedo, e conta com o voto
católico?); Dilma estaria sendo prejudicada pelos escândalos de corrupção (que
se tornaram tão banais que já nem são notícia “quente”: as ondas ainda
poderosas do mensalão não impediram a
reeleição de Lula em 2006, nem a revelação de que família e amantes de Lula
estavam todos com a boca na botija impediu a eleição de Dilma, o “poste” de
Lula, em 2010); o “eleitorado” (conceito um tanto heterogêneo e impreciso) está
cansado da polarização, ou bipartidarismo, PT-PSDB, como se isso fosse o
equivalente da repetição recorrente da mesma novela das oito, afinal a eleição
se reduziu ao horário eleitoral gratuito (mas essa polarização era fictícia: a
vitória eleitoral do PT não correu perigo nas três últimas eleições
presidenciais, mesmo quando o PSDB chegou ao segundo turno; o suposto
“eleitorado tucano” era, pelo menos em sua metade, um eleitorado anti-PT; assim
como, nas duas eleições vencidas por FHC no esteio do Plano Real, o PT não
ameaçou sua vitória); e, para não esquecer os inevitáveis e simpáticos
conspiracionistas de plantão, a “imagem” eleitoral de Marina estaria sendo
construída desde há muito tempo (provavelmente desde antes de 2002) pelas
“forças obscuras” do multipresente e impessoal “império” sem nacionalidade,
sede ou sexo (não do imperialismo americano, europeu ou japonês, com os que se
pode fazer vantajosos e rendosos negócios), conceito que é o último álibi dos
oportunistas e mais recente carniça para idiotas, principalmente do tipo
intelectual.
O espetacular e meteórico crescimento eleitoral de Marina Silva se deu,
segundo revelam as sondagens e a simples intuição política, não devido a um
misterioso carisma pessoal, mas comendo votos tucanos, indecisos,
abstencionistas e até petistas, sem falar nos votos religiosos (o Pastor
Everaldo, do PSC, que chegou a ser creditado de 4% das intenções de voto,
parece ter selado agora um destino de figurante eleitoral), ou seja, angariando
votos em todos os setores (não de modo uniforme, claro), consolidando-se como
alternativa eleitoral diante da queda da fórmula Dilma-PT-PMDB, evidenciada
logo depois de junho-julho 2013, fragilmente recuperada depois, e novamente
posta em questão pela evidenciação da crise da economia capitalista brasileira
em 2014.
A catástrofe da seleção canarinha na Copa ilustrou a situação de um país
no limiar da débâcle. As previsões oficiais de crescimento econômico (1% do
PIB) não ocultaram as previsões mais realistas do “mercado”, que anteciparam um
retrocesso econômico (maior ainda quando considerado o PIB per capita). As exportações de manufaturados (base
principal da produção industrial) estão em 2014 US$ 6 bilhões abaixo de 2008,
um retrocesso absoluto de 17%. As demissões estão na agenda de todos os setores
econômicos. Os indicadores industriais de produção, faturamento, uso da
capacidade instalada, etc., embicaram para baixo nos últimos seis meses.
A ausência de
investimentos (estatais ou privados) levou à crise os dois setores básicos da
sobrevivência social: água e energia. A população de várias capitais já se
encontra consumindo água contaminada, extraída do fundo das reservas hídricas,
e se perfila o racionamento do consumo, já decretado em algumas regiões. As
distribuidoras de energia (setor privatizado pelo “neoliberalismo” tucano, o PT
se limitou a “regula-lo”, com os resultados que agora se constatam) estão em
situação falimentar. Para evitar cortes imediatos de fornecimento, o governo
teve que entrar com empréstimos diretos (70% do auxílio às empresas geradoras e
distribuidoras foi realizado através de bancos públicos) e também como fiador
de outros empréstimos em bancos privados. Nacionalizar todo o setor (produtores
e distribuidores), que está saqueando a população e afundando o país, nem
pensar.
Em um contexto de inflação crescente e de carestia, para “salvar a
economia” até as eleições gerais, o governo petista apelou novamente para a
receita da catástrofe: afrouxamento das regras financeiras (encaixes e
depósitos compulsórios dos bancos) para incrementar ainda mais o crédito ao
consumo, em condições de virtual default do consumo privado (63% das famílias
estão endividadas, uma percentagem que é bem maior nas grandes cidades, com um
20%, ou 33% dos endividados, em situação de atraso ou inadimplência). Em
agosto, o BC reduziu em R$ 15 bilhões o capital mínimo exigido para as
operações bancárias, o que se somou ao corte de R$ 10 bilhões realizado em
julho: com isso, os bancos podem adicionar ao sistema de empréstimos (de
dívidas) a bela soma de R$ 225 bilhões, nove vezes o valor subtraído do capital
mínimo exigido pelas normas de “regulação” financeira, uma verdadeira “fuga
(cega) para a frente”.
Nos quatro anos de Dilma, o crescimento acumulado do PIB caiu de 19,6%
para 7,4% (uma redução de 60%); a taxa de inflação acumulada aumentou de 22%
para 27% (aumento de 20%); o principal, o déficit acumulado em conta corrente
pulou mais do que a candidatura de Marina, de 98,2 bilhões de dólares para 268
bilhões da mesma moeda, um aumento de 170%. A política capitalista está levando
o Brasil para o buraco mais fundo de sua história econômica.
A oposição neoliberal (PSDB) não capitalizou a crise porque, em primeiro
lugar, nos dois estados principais em que governa (Minas e São Paulo) se
encontra à cabeça do desastre hidroenergético. Em segundo lugar, porque seu
programa (privatizar absolutamente todo, explodir o Mercosul e procurar acordos
de livre comércio - entrega total - com a UE e os EUA, repressão total e sem
limites contra os trabalhadores e a juventude) não terminou de seduzir à
maioria do empresariado, que fez mais doações à campanha pela reeleição de
Dilma Rousseff (R$ 300 milhões) do que à do governador mineiro Aécio Neves. Sem
falar que, em matéria de repressão (militarização e prisões, “lei
antiterrorista” em andamento parlamentar) o governo petista superou todos seus
predecessores, com a vantagem adicional de que o partido controla a principal
central sindical (a CUT).
Depois de um período em que o repúdio popular à degradação econômica e
social se canalizou principalmente através do crescimento das abstenções, os
problemas políticos principais para o governo petista vieram de sua própria
coalizão governamental: à deserção do PSB, à qual se somou a antiga cisão da
eco-evangelista Marina Silva, agregou-se o fato de que o grande aliado do PT, o
PMDB (dono da maior bancada nas câmaras e do maior número de municípios) está
enfrentado ao PT, nos níveis abaixo da candidatura presidencial, em estados em
que vive 75% da população do país. Ou seja, que apoiou a reeleição de Dilma,
poupando-se do desgaste de uma disputa presidencial, para depois lhe por uma
corda ao redor do pescoço.
A “surpresa Marina” não foi, por isso, raio em céu de brigadeiro, mas o
arremate desse processo de crise e degringolada que, em caso de concretizar-se
como derrota eleitoral, pode levar o PT à implosão, e ao realinhamento de toda
a esquerda (e toda a política) brasileira em função disso. E Marina não é uma
“traição” ou um desvio da linha petista: suas imprecações contra a “velha
esquerda”, muito elogiadas pela grande imprensa, no debate eleitoral da Band,
dirigidas formalmente contra a candidata do PSOL, eram na verdade (e a imprensa
não se enganou) dirigidas por elevação contra Dilma e o PT. A “normalização” do
PT contra as “tendências de esquerda”, iniciada no V Encontro Nacional (de
1987), e continuada do I Congresso Nacional (de 1991), preparou, como se sabe,
o PT para ser “partido de governo”.
Os executores da caça às bruxas intrapartidária da década de 1990 foram,
como aconteceu com os executores dos Processos de Moscou imediatamente depois
destes, fritados e descabeçados durante o primeiro governo Lula, no episódio do
“mensalão”. E, como aconteceu na ex URSS sob Ieltsin, o último tiro contra a
“esquerda” foi dado por Marina (que a tudo aquilo assistiu comprazente e
interessada em aprender, e aprendeu) contra o próprio PT, partido do qual foi
dirigente, favorita de Lula, vereadora, deputada, senadora e ministro do
Estado, para agora candidatar-se, seriamente, ao posto de coveiro. A escola do
“partido socialista de novo tipo” baseado no “modelo petista” funcionou
perfeitamente: Marina Silva foi sua aluna mais avantajada.
Qual é o papel e as perspectivas da esquerda no meio disso tudo?
Responder isto exige responder uma pergunta prévia: o que é a esquerda, hoje, no Brasil?
Do ponto de vista das siglas partidárias, responder é fácil: o PSOL, o
PSTU, o PCB e as correntes “de esquerda” do PT (das quais a única que não faz
simples figuração é a “Articulação de Esquerda”, com publicações regulares e
disputa de espaços políticos, no partido, nas eleições internas e gerais, nos
movimentos de massa).[1] A
história política do Brasil passou, nas últimas duas décadas, pelo PT. A
“esquerda do PT”, porém, se limita principalmente a reivindicar “mais
radicalismo” de Dilma-Lula, apoiando suas “medidas progressistas” sem criticar
seu rumo burguês pró-capital financeiro, e sem se postular como alternativa
política real às tendências e, sobretudo, às figuras dirigentes (não basta
Valter Pomar participar regularmente do PED como opositor, obter 7% dos votos e
esperar pelo próximo PED, para qualificar isso de luta política consequente,
nem falar de luta de programa).
Afora essas siglas e correntes políticas, existe uma miríade de
grupelhos sem política própria, cuja enumeração seria inútil, pois em geral se
comportam como satélites parasitas dos partidos mencionados (em especial do
PSTU) e se encontram em permanente processo mitocondrial, o que torna qualquer
enumeração provisória e irrelevante.
A esquerda do país não se limita a essas siglas, pois o grosso de sua
militância se encontra enquadrado em uma série, um verdadeiro arquipélago, de
“movimentos sociais”, como o MTST, o MPL ou, o mais antigo, o MST (embora este
se encontre, desde 2003, com um pé dentro e um pé fora do governo, chegando a
jogar um papel de bombeiro “de esquerda” nas mobilizações de junho-julho 2013),
para não falar dos milhares de militantes sem filiação partidária nem
“movimentista” que se encontram nas fileiras do sindicalismo classista. Estes
movimentos são, obviamente, imprescindíveis nos setores sociais em que atuam.
A autolimitação política que se impõem, em função da preocupação de não
“descolar” de modo vanguardista de sua base social, se transforma em obstáculo
quando transformam essa necessidade em virtude, através de um discurso contra a
“esquerda organizada”. Esta oscilação permanente entre Scylla e Caribdis não
pode ser quebrada “de dentro”, mas pela intervenção da polêmica e das propostas da esquerda política. Na ausência desta, o
“movimentismo” conclui, inevitavelmente, no culto da ação pela ação, sem
programa nem organização, que o black
bloc representa em estado puro, cumprindo um papel de desorganização,
eventualmente até de provocação, nos movimentos de luta.
Na esquerda propriamente política, o PCB cumpre, até o presente, um
papel secundário e complementar. Sua importância deriva menos de seu registro
eleitoral do que de sua condição de pretenso continuador do partido fundado em
1922 (no que concorre, em grande desvantagem, com o PCdoB, uma máquina
empresarial-eleitoral aliada a qualquer governo que lhe abra um espaço,
inclusive de direita). O PCB pretende superar programaticamente o velho
“partidão” pela caracterização de “capitalista”, e não mais de “feudal”, da
formação econômico-social brasileira (até que enfim, né?), não derivando isto
da caracterização da economia mundial e seu desenvolvimento desigual, e sem
superar as limitações programáticas do velho stalinismo, pois propõe, para a
“transição para o socialismo”, um “poder popular” tão indefinido quanto a
própria noção de “povo”, em substituição da noção “ultrapassada” de ditadura do
proletariado, ou seja, do regime político de um governo operário e camponês.
Esta superação do stalinismo é puramente intelectual, não política; o próprio
PCB é, sobretudo, um partido de intelectuais.
O PSOL, por sua vez, não é um partido, mas uma federação de tendências
originadas em outros partidos (PT e PSTU) que chegam a protagonizar
enfrentamentos internos acirrados até de natureza física (em Amapá, uma
convenção do PSOL chegou a ter a participação da polícia para proteger um setor
interno), sem que o sangue nunca chegue ao rio. O enfrentamento “direita vs.
esquerda”, no PSOL, não corresponde a tendências que foram se delimitando a
partir de uma base programática ou histórica comum, mas ao confronto de
tendências que construíram um partido-frente a partir de programas e
organizações diferenciadas, até diametralmente opostas, ou seja, é um confronto
de aparelhos (ou de aparelhinhos).
Como acontece nestes casos de partido-frente (há outros exemplos no
mundo, como o NPA francês ou Die Linke,
na Alemanha) o setor oportunista/aparelhista tende a levar a melhor, levando o
partido a situações que beiram o ridículo, como o afundamento “interno” da
candidatura presidencial ultraoportunista do senador Randolfe Rodrigues,
literalmente boicotada pelos setores militantes do partido, e que precisou ser
substituída pela candidatura de Luciana Genro. Em SP, estado “avançado” da
federação, a beira do ridículo psoliano
teve ares “intelectuais” (afinal, São Paulo sempre honra o fato de ser o berço
do Cebrap, de FHC e da “escola paulista de sociologia”), pois até as tendências
de esquerda do partido celebraram a pré-candidatura ao governo estadual de um
filósofo uspiano, filiado na véspera e declarado adversário da esquerda
classista e organizada, que ele declara velharias ultrapassadas (pelas suas
próprias elucubrações sem pé nem cabeça, veiculadas na Folha de S. Paulo, esse importante órgão da esquerda “moderna”
brasileira). Felizmente, a vergonha e o ridículo foram evitados, pois a
inconsistente candidatura filosófica, como a de Randolfe, também afundou, e foi
substituída pela de Gilberto Maringoni, que possui uma trajetória militante, e
que acabou convergindo com o PSTU na “frente de esquerda” estadual.
O PSTU é, das formações políticas citadas, a única que possui
consistência partidária e uma relação ativa com o movimento operário organizado
e sua vanguarda, em especial através da Conlutas, e uma presença militante em
importantes centros do operariado industrial. Seu principal problema político (sem entrar na sua trajetória
pregressa, nem nas suas referências ideológico-programáticas) não é sua
fraqueza eleitoral (em relação ao PT ou ao PSOL), mas sua tendência para a autoproclamação
sectária, uma tendência também internacional (embora muito minoritária, nesse
plano), consistente, não na sua defesa do partido
(isto é, da forma-partido), mas na afirmação de que a questão do partido está
resolvida, no Brasil, pela própria existência do PSTU.
Isso o leva a colocar a questão da unidade classista da esquerda sob a
forma limitada e estreita da frente de esquerda (e não do partido), uma forma que a atual (e as
precedentes) gerações operárias e lutadoras brasileiras já superaram, ou
melhor, experimentaram sem superar politicamente, através da experiência do PT
(e, de modo muito mais limitado, pela experiência do PSOL), ou seja, de
diversas formas-partido (o partido
oportunista, caudilhista e sem programa - o PT - e o partido-frente de
tendências - o PSOL), um fato que constitui a principal peculiaridade
brasileira no contexto latino-americano.
Nessas condições, uma nova etapa histórica se abre no Brasil, devido à
crise econômica, à crise política galopante (da qual Marina Silva é uma expressão, não uma protagonista
independente) e à nova etapa da luta de classes: as greves, que entre 2003 e
2005 oscilaram em torno do número de 300 anuais (compreendendo entre 15 e 20
mil horas paradas) pularam em 2012 para 873 anuais, com quase 87 mil horas
paradas (segundo medições do Dieese). Em São Paulo, a recente greve de quase
110 dias das universidades estaduais paulistas, com sistemáticas assembleias e
mobilizações de rua, foi um símbolo da nova etapa política que se abriu.
Para a esquerda brasileira, e para toda a esquerda mundial (pois a
verdadeira esquerda classista é, antes de tudo mais, internacionalista) o novo patamar em que se põe a questão do
partido revolucionário no Brasil constitui um desafio histórico decisivo. Os
elementos políticos e organizativos de sua solução já foram integralmente postos pela experiência
histórica das últimas décadas no Brasil, na América Latina, no mundo todo. Cabe
agora tirar as conclusões políticas, através do seu debate aberto.
[1]
Existe outra sigla, que não merece ter seu nome citado, que algum desavisado
considera ainda como “de esquerda”, o que não procede em absoluto, pois além de
ser uma seita autorreferente, autoproclamada e ideologicamente troglodita
(detalhes secundários), é perfeitamente reacionária, defendendo, entre outras
porcarias, o imposto sindical, a peça mestra da arquitetura corporativa –
atrelada do sindicalismo brasileiro, criada pelo varguismo e aperfeiçoada pela
ditadura militar, ainda não superada, sequer legalmente. Trata-se (a sigla) de
uma linha de auxílio do pior da política e do sindicalismo do país,
notabilizando-se apenas pelas suas sistemáticas provocações e agressões físicas
contra a esquerda e o ativismo classista. Sua única relevância é possuir um
registro eleitoral, o que a torna potencial veículo de uma aventura provocadora
reacionária de maior voo (como aquela que alguma vez serviu de veículo a
Fernando Collor). Sua exclusão clara e explícita de todo e qualquer fórum da
esquerda ainda se faz esperar.