quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

A AMÉRICA LATINA, A ESQUERDA E A CRISE MUNDIAL


Marcelo Ramal – Dirigente Nacional e Deputado Provincial de Buenos Aires pelo Partido Obrero na Frente de Esquerda



                                                               
                     
A bancarrota capitalista internacional não somente golpeia com toda a sua força a América Latina, como expõe claramente os limites insuperáveis do nacionalismo de conteúdo capitalista para tirar o continente da opressão, do atraso e da miséria social.

Durante a 1ª fase da crise internacional, que explodiu com a quebra do Lehmann Brothers, o ciclo especulativo que se havia concentrado nas bolhas imobiliárias norte-americana e de partes da Europa, deslocou-se para a periferia do mundo. A fabulosa massa de recursos monetários que os Estados puseram em circulação para resgatar o sistema financeiro em quebra recriou outra bolha, desta vez com a dívida pública e privada dos chamados países "emergentes" e com suas mercadorias exportáveis.

Na América Latina, as experiências nacionalistas ou "progressistas", que emergiram das crises sociais e rebeliões contra o "neoliberalismo" da década de noventa, acreditaram ver sua oportunidade e alimentaram a ilusão de prolongar seus governos por décadas. Enquanto isso, a contraditória "bonança" que chegava como produto da crise mundial era brutalmente dilapidada pelas camarilhas capitalistas locais: os beneficiários dos altos preços das matérias-primas foram a boliburguesia venezuelana, a pátria das empreiteiras brasileira - hoje sentada no banco dos réus do "Petrolão" -, Cristóbal López ou Lázaro Baez da Argentina. Os fabulosos benefícios da exportação atuavam como garantia de um novo ciclo de endividamento (com exceção do kirchnerismo, que substituiu o mercado mundial de dívida pelo saque dos fundos previdenciários e os bancos estatais).

Enquanto invocavam o "modelo produtivo", as experiências nacionalistas continentais aprofundaram a primarização da economia e a desindustrialização. Desse boom fictício, as massas latino-americanas somente receberam a carestia alimentar, a precarização trabalhista e um agravamento da polarização social, que os governos atenderam com medidas assistenciais.

A explosão das contradições da economia chinesa, desinflando a sua própria bolha imobiliária e sua sobrecapacidade industrial, abriu passagem à queda dos preços das matérias-primas. Nesse quadro, as ilusões de prolongamento do ciclo anterior com uma nova associação com o capital estrangeiro, a partir da mineração ou da exploração não convencional de hidrocarburetos, chegam ao fim. A América Latina ingressa definitivamente no vendaval da bancarrota capitalista, das crises políticas e as rebeliões populares.

Este é o pano de fundo das crises e transições políticas que envolvem a região.

A decomposição do regime venezuelano não reconhece limites, no ritmo do despencamento internacional do preço do petróleo, a carestia, o desabastecimento e a fuga de capitais. A crise está arrasando com as próprias conquistas bolivarianas, desde o controle nacional da PDVSA até as medidas sociais sobre os mais explorados. A outra face deste processo é o fabuloso enriquecimento da camarilha capitalista ligada ao governo chavista, que acessa de forma privilegiada às divisas que são obtidas no mercado oficial. O boicote econômico direitista que se desenvolve contra o governo - e que tem uma de suas maiores expressões no contrabando de petróleo - é conseqüência, no entanto, do fracasso do intervencionismo estatal, que nunca alterou a base da gestão capitalista da economia. Uma aguda expressão desta crise é o conflito fronteiriço com a Colômbia, no marco do intenso contrabando que explora os preços baixos do petróleo venezuelano, de um lado, e a penúria de alimentos neste país, de outro. A decisão de proibir o tráfego de pessoas na fronteira e de deportar mais de mil colombianos, por parte do regime de Maduro, mostra o abandono de qualquer veleidade bolivariana ou latino americanista para abordar a crise. O chavismo chegou às eleições parlamentares em meio a um claro imobilismo, que apenas dissimula (como ocorreu na Argentina) as medidas de ajuste que se preparavam para o próximo período. A direita, por sua vez, aspirava a uma vitória que a habilitasse a impulsionar um referendum revogatório do mandato presidencial. Os próximos meses, portanto, serão decisivos para o desenlace da crise venezuelana.

                                                                             


No Brasil, o novo mandato de Dilma Rouseff se dedicou a conter o refluxo de capitais com medidas de ajuste contra os salários e o gasto social. Nada disto impediu a ascendente fuga de capitais e sua conseqüência, a desvalorização do real. O tobogã econômico tem se conjugado com uma crise política de fundo, donde as denúncias de corrupção que apontam no coração do aparato estatal delataram o completo entrelaçamento da cúpula do PT com a grande burguesia brasileira. O "petrolão" e seus últimos suspiros, de todo modo, têm como pano de fundo uma disputa entre essa grande burguesia e o capital estrangeiro, reclamando uma abertura econômica e comercial que termine com as preferências do regime em favor da grande burguesia. Mas as medidas do gabinete de Dilma nessa direção são insuficientes. Nas últimas semanas, e enquanto Lula viajava à Argentina para expressar seu apoio ao candidato oficial Scioli, em nome da "unidade latino-americana", o neoliberal ex-ministro da Economia (nomeado diretor do Banco Mundial) buscava conter uma nova corrida cambial com maiores medidas de ajuste contra os explorados brasileiros. Até o assistencialismo oficial, que conteve a agudização dos antagonismos sociais do continente sob o chamado "vento a favor", ameaça ser desmantelado sob o impacto da bancarrota capitalista.

A crise mundial golpeou também a base de sustentação acionista dos governos da Bolívia e Equador. Neste último, a queda do preço do petróleo colocou na berlinda a estrutura econômica e social do governo de Correa, e a seu regime monetário dolarizado. Nesse quadro produziram-se importantes ações de luta contra as restrições ao direito de greve e à organização sindical, e os tarifaços no transporte. No Uruguai, o novo governo de Tabaré Vasquez foi "recebido" com uma onda de greves comandada pelos professores, em um quadro de intensa delimitação e debate nas organizações operárias.

Na Bolívia, a resposta do governo de Evo Morales ao declínio econômico - assinalada pela queda das vendas externas de gás e da exportação mineira - tem sido as demissões e aposentadorias forçadas. As greves e mobilizações na região mineira de Potosí, reclamando pelas promessas não cumpridas em matéria de infraestrutura social e industrialização, revelaram o caráter parasitário do boom extrativista que atravessou a Bolívia e a toda a América Latina: a época das vacas gordas não deixou nada a seus povos; a crise, em troca, trouxe medidas de ajuste.

A Argentina, por sua vez, passou por uma eleição presidencial que expressou o esgotamento do regime de emergência e arbitrário caracterizado pelo kirchnerismo. O resgate da dívida pública e das privatizações sob a base do orçamento público, os fundos previdenciários e as reservas internacionais conduziram o país às portas de uma nova falência. A burguesia reclama a volta do financiamento internacional, que exige como condição um ajuste - desvalorização, tarifaços, contenção salarial, cujo alcance supere o que já foi posto em marcha pela era kirchnerista. Com seus matizes, os candidatos que disputaram a sucessão presidencial - Scioli, Macri, Massa, estavam todos comprometidos com esta orientação, junto com a pseudo-progressista Stolbizer.

Os governos nacionalistas ou “trabalhistas” fracassaram também em todos os projetos de unidade continental que traçaram nestes anos. O MERCOSUL nunca conseguiu superar o marco de um conjunto de acordos comerciais em benefício dos monopólios capitalistas que operavam em seus próprios mercados – em primeiro lugar, da indústria automobilística. Depois, nasceu a UNASUL, sob a pressão bolivariana e das empreiteiras brasileiras que aspiravam ao desenvolvimento de uma indústria de armamentos sob seu comando. A meta mais ambiciosa desta etapa, o Banco do Sul, foi acariciada ao compasso do boom especulativo das matérias-primas e dos fluxos de capitais. Hoje, todos estes projetos se encontram reduzidos a nada: a crise mundial agravou todas as disputas comerciais no interior do MERCOSUL. Por sua vez, as burguesias regionais buscam acordar por separado com a União Europeia e outros blocos, para escorar o afundamento das suas exportações. O projeto da integração regional somente serviu para reforçar ao grande capital agrário (soja), a expulsão de camponeses, a espoliação mineira e o re-endividamento internacional. Finalmente, a carreira desvalorizadora no interior da região é uma concorrência pela maior exploração e precarização dos operários de seus respectivos países – nisto consiste as invocações à competitividade dos economistas de Massa, Macri ou Scioli na Argentina, ou o chamado a reduzir o “custo Brasil” por parte de seus similares neste país.

Um denominador comum no declínio dos governos nacionais ou “progressistas” é a emergência de variantes direitistas, que se servem da crise para promover uma alteração política e uma virada decidida em favor do capital internacional. Isso está presente na agitação direitista na Venezuela, apesar de que o imperialismo aposte ainda num verniz do chavismo no marco dos remédios institucionais. O mesmo ocorre na Argentina, com a vitória do direitista Maurício Macri.

                                                                         



As saídas direitistas ou de ajuste, no entanto, tropeçam com os limites da atual situação internacional, caracterizada pelas crises nacionais, as rebeliões populares e os bruscos deslocamentos políticos. Neste quadro deve consignar-se a vitória da esquerda na Grécia, os tropeços experimentados pela União Europeia e os Estados Unidos nos seus intentos por ficar com a Ucrânia e a atual catástrofe humanitária dos refugiados, que agudizou a crise no interior da UE e incorporou à sua geografia as conseqüências mordazes das guerras de ocupação imperialistas no Oriente Médio. Por isso mesmo, e pelo quadro internacional que enfrenta, o imperialismo não tem hoje a vertente direitista como sua variante principal. Ao contrário, a orientação central do Departamento de Estado norte-americano passa pela política de contenção e de acordos, como se expressa no diálogo com Cuba e no acordo com as FARC. O recente giro do Papa buscou apontar esta política. A tentativa de uma integração plena de Cuba ao mercado mundial capitalista se choca, no entanto, com as tendências da própria bancarrota internacional. O imperialismo exige do regime cubano o levantamento de todas as barreiras à sua penetração e à liquidação de conquistas históricas de seus explorados. Mas tem muito pouco para oferecer-lhe, no marco de sua própria crise. A transição que enfrenta Cuba, portanto, deve ser apreciada no conjunto do cenário internacional e do próprio continente.

A inviabilidade das saídas direitistas se evidencia nas próprias medidas de ajuste que estão adotando os nacionalistas ou progressistas em resposta à crise, como ocorre no Brasil e outros países da região, e que estão lugar a fortes respostas populares.

O fantasma da direita, de todo modo, não deixa de ser invocado pelos nacionalistas ou “progressistas”, não para opor-lhes uma orientação antagônica, mas sim como extorsão contra a classe operária e os explorados do continente: segundo eles, os que vivem de seu trabalho deveriam estreitar fileiras com os Maduro, Roussef, Evo ou CFK-Scioli, para evitar uma maior privação de suas condições de vida. A chantagem, no entanto, não tem outro propósito senão o de criar as condições dessa maior privação ... nas mãos dos supostos “progressistas”. É o que ocorreu no Brasil, quando Roussef ganhou sua reeleição, agitando o fantasma da direita para por em marcha um ajuste feroz tão logo assumiu. No entanto, o golpe institucional de um Congresso desmoralizado deve ser combatido com a mais completa independência política das organizações operárias e camponesas em relação a todas as variantes da burguesia e do imperialismo. A luta contra o ajuste, e por uma saída para a gigantesca crise econômica, não tolera aliança com os golpistas, que levariam o país para uma situação muito pior.

A crise continental e o descalabro bolivariano ou centro-esquerdista abre, portanto, um imenso campo de intervenção política para a esquerda revolucionária. “À nossa esquerda está à parede”, uma das frases características de CFK, retrata o esforço do nacionalismo burguês para conter dentro de seus limites aos explorados argentinos. Mas o desenvolvimento do Partido Obrero e da Frente de Esquerda, como expressão política independente dos trabalhadores, tem desafiado essa pretensão. Como nunca, a crise mundial – e seu desembarque brutal na região – põe na ordem do dia a luta por partidos revolucionários, na perspectiva da unidade socialista da América Latina.