Uma publicação de simpatizantes da CRQI (Coordenação pela Refundação da IV Internacional) no Brasil
O FIM DA OPRESSÃO E EXPLORAÇÃO DA MULHER SÓ PODE SE DAR NO TERRENO DA LUTA DE CLASSES
POR UM 8 DE MARÇO CLASSISTA, REVOLUCIONÁRIO E DE LUTA CONTRA A OPRESSÃO DA MULHER E CONTRA O CAPITALISMO
“O proletariado não alcançará a emancipação completa se não for conquistada primeiro a completa emancipação das mulheres!” (Lênin, Às Operárias, fev/1920)
A burguesia e o Imperialismo produzem um enorme esforço para retirarem o caráter de classe do dia Internacional da Mulher, desvincularem a luta contra a brutal opressão que sofre a mulher da luta pela emancipação de toda a sociedade do jugo do capitalismo, apresentando a ascensão social e política de uma ínfima parcela de mulheres como símbolos da emancipação da mulher.
A bancarrota mundial do capitalismo, em sua fase senil, é incapaz de oferecer à mulher um sistema público completo de serviços sociais que inclua maternidades, creches, jardins de infância, escolas, restaurantes, lavanderias, prontos-socorros, hospitais, casa de repouso, organizações desportivas, cinemas, teatros, etc., para que a mulher possa se libertar da escravidão e o embrutecimento do trabalho doméstico.
A primeira década e meia do século 21 demonstra um quadro que assola toda a América Latina. No Brasil, os serviços públicos existentes encontram-se em uma situação de completo deterioramento vitimando principalmente a mulher trabalhadora.
É num quadro de avanço da miséria social que a violência contra a mulher cresce, com o aumento dos assassinatos, estupros, mortes de mulheres em clínicas clandestinas, AIDS, todo o tipo de adoecimento psicológico e psiquiátrico, etc. Cresce também o índice de alcoolismo e drogadição principalmente nas mulheres jovens, adolescentes, e isso se dá, ainda que maneira deformada, como uma via de negação, de repúdio, de revolta, contra o sistema e o regime político capitalista, com todas as suas consequências nefastas para a mulher, especialmente para a mulher trabalhadora e para a mulher negra, que tem o seu sofrimento multiplicado multitudinariamente.
A incorporação da mulher ao mercado ao trabalho, ao contrário de ser sinônimo de sua emancipação, constitui-se em um fator de superexploração, salários aviltantes, jornadas de trabalho extenuantes, etc. Por outro lado, a recessão econômica que ameaça atingir a economia nacional e toda a América Latina, já está atingindo em primeiro lugar a mulher trabalhadora, que sofre com o desemprego crônico.
O governo Dilma e de seus aliados do PMDB, PP, e afins, descarrega todo o peso da crise mundial capitalista nos ombros principalmente da mulher trabalhadora, com um ajuste do ajuste fiscal que já atinge R$ 111 bilhões, e que não poupará nas pensões por morte e afastamentos por motivo de doença e no seguro-desemprego. Este brutal ataque principalmente contra a mulher trabalhadora visa tão somente retirar direitos trabalhistas e previdenciários, conquistas históricas, para transferência através do aumento do superávit primário, para os banqueiros nacionais e internacionais.
Em 1908, as trabalhadoras de uma indústria têxtil de Nova Iorque, EUA, se declararam em greve para protestarem contra as terríveis condições que se viam obrigadas a trabalharem. No dia 8 de março, o proprietário fechou as portas impedindo assim que as trabalhadoras saíssem, ateando fogo à fábrica. 140 mulheres permaneceram prisioneiras queimadas vivas pelas chamas. 140 trabalhadoras em greve operária contra a opressão patronal, contra a exploração capitalista deixaram um rastilho de luta que é um guia para a luta das mulheres no mundo inteiro.
Por isso, o 8 de março deve ser de luta e organização das trabalhadoras de forma independente do Imperialismo do estado burguês, da Igreja, dos partidos patronais, etc.
- Pelo direito da mulher decidir pelo seu próprio corpo
– contra a homofobia; - Legalização do aborto com atendimento na rede pública;
- Salário da mulher igual ao do homem;
- Maternidades, creches, jardins de infância, escolas, restaurantes, lavanderias, prontos-socorros, hospitais, casa de repouso, organizações desportivas, cinemas, teatros, etc.
- Pela estatização do sistema de saúde
– Nenhuma verba pública para a rede privada;
- Pela reforma agrária sob controle dos trabalhadores e trabalhadoras. Lugar às camponesas pobres!
- Por um governo dos trabalhadores
– Pelo socialismo
AMÉRICA LATINA VOLTA À CENA
Osvaldo Coggiola
A continuidade da crise econômica mundial (crise da Europa, recuperação limitada e largamente fictícia nos EUA, estagnação crônica no Japão, desaceleração na China) penetrou definitivamente os “mercados emergentes”, incluída a América Latina e seus “carros chefe” (Brasil, México, Argentina). Aponta-se como seu fator essencial o retrocesso de seus mercados de exportação, em especial a China (o que demonstra que essas economias continuaram sendo, basicamente, plataformas de exportação de produtos primários ou semi manufaturados). Esquece-se a fuga de capitais, que foram atraídos por taxas de juros sem paralelo mundial, fazendo do continente o principal espaço de valorização fictícia do capital financeiro internacional; o baixo ou nulo nível de investimentos; o fato de que os “programas sociais” paliativos favoreceram principalmente o trabalho “em negro” ou informal (30% da força de trabalho empregada na Argentina, por exemplo), sem criar um forte e expansivo mercado interno; o crescimento espetacular do endividamento público e privado, que compromete os investimentos públicos e até os programas sociais (consumindo, por exemplo, 47% do orçamento federal brasileiro); a crise e retrocesso dos variados projetos de integração continental independente. O PIB regional cresceu 0,9% em 2014 (contra 6% em 2010) e se prevê um desempenho pífio em 2015, com crescimento zero para o Brasil, segundo seu Banco Central. Já se cogita uma nova “década perdida” para América Latina, como a experimentada na década de 1980.
Contra esse pano de fundo se projetam importantes crises políticas que afetam, em maior ou menor grau, tanto os regimes “neoliberais” (de direita) como os regimes nacionalistas ou “progressistas”, até com a perspectiva de golpes civis, ou cívico-militares, novamente posta na agenda política. Paraguai (Lugo) e Honduras (Zelaya) foram só as primeiras manifestações de uma tendência maior. O pano de fundo geral é a crise capitalista mundial, a crise histórica do modo de produção do capital. São os países mais “desenvolvidos” da América Latina os mais afetados pela crise. A “periferia emergente” do capitalismo “global” enfrenta enormes pagamentos externos, uma dívida principalmente contraída pelas empresas multinacionais, superando em alguns casos as reservas internacionais. Revela-se a miragem de supor que no ciclo econômico 2002-2008 as nações dependentes teriam se transformado em credoras no mercado mundial: com o aumento da dívida privada externa, se mantiveram sempre como devedores netos; os superávits comerciais foram a garantia financeira do endividamento privado. O capital financeiro internacional apropriou-se do excedente comercial gerado pelo aumento dos preços e dos volumes exportados. A crise mundial bateu na América Latina devido à sua fragilidade financeira e comercial e à sua fraca estrutura industrial. Os governos da América Latina afirmaram inicialmente que se salvariam da crise devido à solidez das reservas dos Bancos Centrais. Mas a queda das bolsas regionais, a saída de capitais e a desvalorização das moedas deixaram sem base esses argumentos. O Brasil, orgulhosamente proclamado “sexta economia do mundo”, é apenas o 22° no ranking dos exportadores (com 3,3% do PIB mundial, detém só 1,3% das exportações internacionais). A produtividade total dos fatores econômicos, que cresceu 1,6% na primeira década do século, estagnou a partir de 2010.
A possibilidade dos EUA pressionarem e intervirem abertamente no continente diminuiu ao ritmo de seu declínio econômico e da crise de sua intervenção militar em outras regiões (Oriente Médio, Ásia Central). Limitados para recorrer aos clássicos golpes militares, os EUA, já com Bush, passaram a usar na América Latina o chamado soft power, incluindo a ocupação militar do Haiti por tropas “latino-americanas”, que realizam na ilha do Caribe o serviço policial que os EUA, embrenhados até o pescoço alhures, estavam impossibilitados de fazer. Barack Obama reatou as relações diplomáticas EUA-Cuba e ordenou a desativação da prisão militar de Guantánamo (Cuba), centro de torturas do exército imperialista, mas nem cogita em devolver o território da base a Cuba. Nem voltar atrás na reativação dos exercícios militares da IV Frota, encarregada do patrulhamento da costa atlântica de América Latina, sem falar nas quinze bases militares ianques na América Central e no Caribe. Os EUA buscam recuperar o protagonismo da desprestigiada OEA e estão de olho nas reservas de petróleo e gás natural no mar brasileiro, que colocaram o Brasil como detentor da terceira maior reserva do mundo. Isto, somado às reservas da Venezuela, da Bolívia e do Equador, fortaleceu momentaneamente a posição sul-americana em relação às potências econômicas imperialistas.
A crise dos governos neoliberais (identificados com a estabilização monetária baseada na âncora cambial, ou na dolarização) é seguida, agora, pelo declínio das bases econômicas das experiências reformistas ou nacionalistas baseadas em concessões sociais, tornadas possíveis na primeira década do século XXI por uma conjuntura econômica internacional favorável. Isso também afetou os governos neoliberais sobreviventes, agências diretas do capital financeiro internacional. América Latina entrou em uma nova etapa de lutas nacionais e de classes. A crise mundial irrompe na América Latina depois de bancarrotas capitalistas, crises políticas e levantamentos sociais. O cenário político latino-americano esteve dominado, nas últimas décadas, por crises e mobilizações de massas, em especial nos países andinos. E também pelos choques entre os governos nacionalistas “radicais”, que surgiram dessas crises, e os EUA. A emergência da esquerda na América Latina é geralmente localizada em um período que se estende de 1998 (eleição de Chávez para a presidência da Venezuela) até 2008 (eleição de Fernando Lugo para a presidência do Paraguai, pondo fim a seis décadas de governo do Partido Colorado), passando pelas eleições de Lula, Michelle Bachelet, Evo Morales, Néstor Kirchner, Daniel Ortega, Rafael Correa e a FMLN em El Salvador, devidas ao fracasso econômico dos governos neoliberais, seguidores da cartilha do FMI.
O neoliberalismo, com suas privatizações maciças, a pressão pela abertura dos mercados, em especial os do ex “bloco socialista”, a estratégia do "Consenso de Washington", foi a expressão da procura de uma saída para a massa de capital financeiro internacional acumulado com a crise dos anos 1970. Não era uma “ofensiva”, mas uma política de crise, o que explica privatizações aventureiras, como as dos serviços de água de Peru e Bolívia, que desencadearam rebeliões populares massivas. Foi o impasse do capital em escala internacional o que deu a base para uma virada política de grande amplidão, com a emergência de processos de autonomia nacional, incluindo (em especial nos países andinos) o papel inédito das massas camponesas e indígenas. Na emergência desses processos confluiu a derrubada dos partidos políticos tradicionais, que foram a garantia da estabilidade capitalista durante décadas na América Latina, com a crise mundial das relações econômicas capitalistas.
Depois de um período de enfrentamentos locais e internacionais, os regimes mais “radicais”, o venezuelano-bolivariano e o indigenismo andino, chegaram a compromissos internacionais e com a burguesia local, disciplinando a rebelião popular. As chancelarias das metrópoles imperialistas, e algumas latino-americanas (Brasil e Argentina) desenvolveram uma pressão ativa para que os “nacionalistas radicais” contivessem os processos populares. Isto foi também possível porque, a partir de finais de 2002, a retomada do comercio externo e da produção local, junto com o crescimento dos recursos fiscais, graças a um ciclo comercial internacional favorável às matérias primas latino-americanas, serviu ao conjunto dos governos da região (inclusive os neoliberais) para lubrificar os antagonismos sociais. Desde 2003-2004 se produziu, de conjunto, um refluxo na mobilização de massas. Os governos nacionalistas conseguiram administrar e canalizar a pressão popular para neutralizar a oposição de direita. A fase de relativo refluxo das lutas populares latino-americanas, a partir de 2004, condicionou a sucessão presidencial no México e o reinício de grandes lutas estudantis e mineiras no Chile e no Peru.
Os sucessos econômicos latino-americanos do século XXI, denominados pela OCDE de “grande festa macroeconômica”, foram relativos. Houve altas taxas de crescimento, inflação reduzida e orçamentos equilibrados ou até com superávits. Ao mesmo tempo, quase 50 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza, pelo menos estatisticamente: segundo a Cepal, a pobreza diminuiu de 43,9% para 28,1% na América Latina, entre 2002 e 2012. A população com rendimentos entre zero e quatro dólares diários caiu de 45% (2000) para 30% (2009); os detentores de uma renda entre 10 e 50 dólares diários (chamados de “classe média”) cresceram de 20% para 30% no mesmo período; os “vulneráveis” (entre 4 e 10 dólares diários) passaram de 30% para 40%. Os índices de melhora dos mais pobres se situaram, porém, abaixo do aumento do PIB regional. A pobreza extrema (12%), por outro lado, vem crescendo nos últimos anos. A concentração de renda (polarização social) se manteve estável, e até aumentou em países como México ou Colômbia; América Latina continuou sendo a região com a maior desigualdade social do planeta. Um dado notável é a queda do crescimento demográfico, situado em 1,8 filhos por mulher em países como Brasil ou Chile (esse índice é de 1,9 nos EUA), abaixo da taxa de reposição da população. Na América Central o índice de fertilidade feminina caiu de 6,0 (1960) para 2,2 atualmente, uma queda que os EUA ou Europa levaram mais de um século para atingir.
O retrocesso da pobreza foi especialmente importante no Brasil, onde os programas “focalizados” permitiram uma diminuição significativa da pobreza absoluta, coexistente, no entanto, com uma trajetória pouco alterada da concentração de renda e, ao mesmo tempo, com uma diminuição da renda média, da remuneração média do trabalho assalariado, e um grande incremento das fontes de renda não vinculadas ao trabalho, nas camadas mais pobres. Houve uma expressiva formação de reservas internacionais, em decorrência dos saldos comerciais obtidos pela alta de preços das commodities, e também pelo fato da taxa básica de juros, base da remuneração dos títulos públicos, ser muito elevada. Isto fez com que houvesse interesse dos investidores externos em negócios com os papéis da dívida pública. Entre 2003 e 2007 América Latina recebeu um volume recorde de investimentos estrangeiros, superior a US$ 300 bilhões. Suas multinacionais lançaram-se a outros mercados comprando importantes ativos, inclusive em países desenvolvidos. O processo alimentou a ciranda financeira: tornou-se excelente negócio captar recursos no exterior, a taxas mais baixas, e aplicar esses recursos, a taxas mais elevadas, na dívida pública latino-americana. O governo Lula isentou do imposto de renda os fundos institucionais estrangeiros que aplicassem recursos em títulos públicos. Com isso, aumentou a entrada de divisas, fazendo com que as reservas crescessem. Mas com um custo financeiro elevadíssimo: a remuneração dos credores é de 12% reais ao ano, uma carga de juros crescente e impagável.
Os dados da economia latino-americana começaram a mudar drasticamente com a crise mundial. Seu início, no entanto, multiplicou as declarações otimistas dos governos. América Latina encarava a crise mundial com mais de 75% do PIB regional com classificações de risco de crédito dentro do "grau de investimento". Em 2008, a região apresentava solvência, com 70% de sua dívida coberta por reservas internacionais - patamar bem acima dos índices verificados no Leste Europeu. Um fator alardeado foi a redução das dívidas denominadas em dólares. Mas isto ocultou a natureza do processo econômico, embutida na valorização monetária propiciada pela “estabilização”. A dívida externa foi “zerada” porque as reservas internacionais superaram seu montante, o que criou a fantasia da superação da dependência financeira externa. Mas o endividamento de um país com livre movimentação cambial de empresas estrangeiras e nacionais não pode ser aferido apenas pela dívida externa em títulos e contratos do governo. Com a abertura financeira, assistimos também uma acelerada desnacionalização das empresas, cujos lucros e dividendos foram crescentemente transferidos ao exterior. Com o barateamento das importações e as exportações menos competitivas, os resultados das contas externas começaram a apresentar uma inflexão importante já em 2007.
O Brasil voltou a apresentar déficit nas transações correntes em 2008, por um valor de US$ 4 bilhões.
A dívida real, passível de ser saldada com moeda conversível, deve ser avaliada em conjunto com a situação da dívida interna em títulos públicos, e com a dívida externa privada. Um título público brasileiro, que vence em 2045, oferece 7,5% de interesse por cima da inflação, o mesmo título do Japão paga somente 1%, ou menos; tomar emprestado em Tókio para investir em São Paulo converteu-se em grande negócio para os bancos que operam no Brasil. As quedas espetaculares que afetaram a Bolsa de São Paulo foram a manifestação da vulnerabilidade financeira do país. A demolição dos “mercados emergentes” começou. A crise mundial tem mecanismos diretos de transmissão vinculados à contração da demanda mundial.
Mesmo durante o boom comercial, a dependência da região em relação aos EUA e à Europa continuou grande. Mais de 65% das exportações latino-americanas dirigem-se a essas duas regiões, com o restante indo para a Ásia e para parceiros regionais. Com a desaceleração chinesa, calcula-se que, em 2-3 anos, os EUA voltem a ocupar o lugar de maior importador de produtos brasileiros, deslocando a China dessa condição. Alguns países latino-americanos estão mais expostos ao comércio unilateral: o comércio do México é totalmente dependente dos EUA (que consome mais de 85% de suas exportações). No caso brasileiro, a economia mais “independente” do continente, e a dotada do maior parque industrial, seu superávit comercial (2003-2013) com o Mercosul foi de US$ 46 bilhões; com os EUA-UE, de quase dobro, US$ 90 bilhões (17,8 bilhões com os EUA, 71,6 bilhões coma UE). As economias latino-americanas continuaram muito dependentes da venda de matérias-primas, que representam mais de 60% de suas exportações. A situação do mercado mundial consente cada vez menos uma saída baseada num novo ciclo de endividamento. Os fluxos de capitais, aplicações e investimentos diretos estão em queda.
As experiências nacionalistas fracassaram na tentativa de estruturar um Estado nacional independente, e de iniciar um processo de industrialização capitalista autônomo, destruindo a supremacia do capital financeiro. Não criaram uma burguesia nacional, nem estruturaram uma etapa de transição sob a hegemonia do Estado. Em vez disso, criaram uma “boliburguesia” (os “boligarcas” da Venezuela), ou o “capitalismo de amigos” dos Kirchner, através da burocracia governamental (que sangrou financeiramente o Estado). Nas nacionalizações, os capitalistas (externos e internos) receberam fortes compensações, até maiores do valor em bolsa dos capitais “expropriados”. Em nenhum caso revolucionaram a gestão econômica, através do controle ou gestão coletiva da propriedade nacionalizada. As nacionalizações não tocaram os bancos, base da gestão capitalista da economia. O uso dos recursos fiscais extraordinários para compensar os capitais nacionalizados acabou bloqueando a possibilidade de um desenvolvimento econômico independente. O capital estrangeiro, forçado a sair da esfera industrial, retornou sob a forma de capital financeiro, usando as indenizações obtidas para a compra da dívida pública. Em Venezuela o petróleo se encontra formalmente nacionalizado, mas a PDVSA registra uma crise de custos e de endividamento, que a torna dependente de acordos de participação com os monopólios internacionais para explorar a Bacia do Orinoco. Venezuela sofreu, sob Chávez, um retrocesso industrial importante (dissimulado pela renda diferencial petroleira do país) e atualmente importa 70% de suas necessidades alimentares.
Nesse contexto, em maio de 2013, México, Chile, Colômbia e Peru, países com tratados de livre comércio com os EUA, puseram em pé a “Aliança do Pacífico” (Costa Rica e Panamá são membros observadores), eliminando em 90% suas tarifas de importação mútuas (prevendo-se a eliminação dos 10% restantes até 2020), e metendo uma cunha nos projetos integracionistas continentais animados pelo Brasil (os quatro “pacíficos” tem uma população de 210 milhões, contra 200 milhões do Brasil; um PIB de US$ dois trilhões, contra US$ 2,4 trilhões brasileiros). A iniciativa se situa no marco das negociações promovidas pelos EUA em favor do TPP (Associação Trans-Pacífica) com países da Ásia (não a China), Oceania e América que possuem costas no Pacífico, ignorando os acordos comerciais regionais desses países. Os nove países do projeto TPP (que inclui Chile e Peru) têm um PIB de US$ 18 trilhões (85% dos EUA) que ultrapassaria US$ 28 trilhões caso se incorporassem México, Canadá e Japão.
A “movida” de inspiração ianque aproveitou que os projetos de “união latino-americana” agitados pelo nacionalismo sul-americano não foram longe, e até retrocederam. A Venezuela chavista abandonou a CAN (Comunidade Andina das Nações) em 2006 – a CAN ficou restrita à Colômbia, Peru, Bolívia e Equador – e sua incorporação ulterior ao Mercosul, concomitante com o golpe que derrubou o governo Lugo e produziu a exclusão temporária do Paraguai do bloco, beneficiou principalmente as empreiteiras brasileiras, que já obtiveram um “Acordo de Complementação Econômica” (outubro de 2014) exclusivamente favorável ao Brasil, e por cima das instituições e acordos do Mercosul. O ingresso da Venezuela seria interessante para América Latina se permitisse acordos bilaterais, de intercambio de energia, com base em preços inferiores aos internacionais, investimentos industriais em ampla escala, com créditos baratos e de longo prazo. Isso é uma perspectiva fora do alcance das burguesias nacionais, pelas suas rivalidades e pela pressão do capital financeiro internacional.
Os governos bolivarianos se vangloriaram de uma suposta integração sem precedentes na historia continental, mas seu palavrório carece de substância, como o demonstra o retrocesso do Mercosul, embrenhado em disputas comerciais (desde 2011, Argentina aplica tarifas não automáticas de importação a 600 produtos). O propósito do bloco criado em 1991 foi o de negociar uma maior integração ao mercado mundial de seus países, o que concluiu em fracasso (só foi firmado um acordo de livre comércio... com Israel). Brasil e Argentina incorporaram Venezuela ao Mercosul, uma medida sem conteúdo: a postulada integração energética do bloco revelou-se uma ilusão. As crises mundiais apresentam uma oportunidade para os países de desenvolvimento atrasado, porém para isso é necessária uma política independente da burguesia nacional, obrigada a atuar sob a pressão da crise em função de sua dependência do capital internacional. Mais do que nunca que as economias da América Latina dependem de um punhado de matérias-primas, agrícolas e minerais. A integração latino-americana, que propicia especialmente o Brasil, reflete os interesses das grandes empreiteiras de obras de infraestrutura, vinculadas aos investimentos de capitais mineiros internacionais e em estreita relação com o capital de maquinário pesado dos EUA.
O nacionalismo não conseguiu superar suas limitações localistas e a concorrência entre as burguesias do continente. A proposta de “integração dos exércitos” é reacionária: as castas militares (e os “serviços de inteligência” vinculados) não deixaram de ser um corpo alheio a qualquer controle social, e até a qualquer controle real por parte das instituições ditas representativas. Nos países favorecidos pelas exportações de combustível (gás e petróleo), o nacionalismo usou as nacionalizações, não para transformar os trabalhadores em classe dominante, mas para impedir sua organização independente, e submeter suas organizações à tutela do Estado. A COB boliviana se submeteu ao governo de Evo Morales, cuja estabilidade econômica e política se baseia nas vendas de gás ao Brasil e à Argentina, e no aumento de 32% das taxas e royalties que as empresas estrangeiras produtoras devem pagar ao Estado desde 2006. Na Venezuela, o governo se empenhou em estatizar o movimento sindical. Em geral, as nacionalizações parciais e os aumentos de arrecadação serviram como pretexto, em setores sindicais e da esquerda, para abandonar a independência de classe e somar-se ao Estado nacionalista. Submetidas ao Estado nacionalista-caudilhista, as nacionalizações e as “ilhas de autogestão” (que devem competir comercialmente com as empresas capitalistas) concluíram reforçando o capitalismo e a exploração. A Venezuela pós-Chávez, afetada pela queda dos preços petroleiros, afundou numa inflação de 65% anual acompanhada de recessão, que projeta a sombra de um default financeiro. A movimentação golpista da oposição tropeça com sua divisão interna, que reflete a própria divisão do imperialismo ianque (extremistas republicanos vs. Obama-democratas) acerca da política a se seguir, levando-se em conta a identidade chavista das Forças Armadas.
A nacionalização integral dos recursos naturais e energéticos é a pré-condição para uma integração latino-americana que não seja um instrumento da competição entre os monopólios (como a falida ALCA, ou o próprio Mercosul). Sem essa condição, os projetos unificadores (como o gasoduto do sul) não saem do papel. As nacionalizações foram condicionadas favoravelmente pelo aumento dos preços do combustível e dos minerais, ou seja, pela possibilidade de distribuir a renda diferencial entre o capital externo e o Estado. Havia (até sobrava) dinheiro para satisfazer todo mundo. Mas não serviram para modernizar a exploração dos recursos naturais, consumindo improdutivamente o capital investido. Com base nos recursos extraordinários, Venezuela e Bolívia impulsionaram importantes campanhas de saúde e de educação, mas não avançaram em sentar as bases econômicas da autonomia nacional, para sustentar no longo prazo os planos e programas sociais. Concluíram dilapidando a renda extraordinária da produção mineira, na crença de que os preços internacionais não cairiam nunca, mas o preço internacional do petróleo, que chegou a atingir US$ 150, despencou para pouco mais de 50.
A queda dos preços dos hidrocarbonetos, como consequência da crise mundial, fez entrar em crise as nacionalizações parciais, e abriu a via para uma nova etapa de concessões aos monopólios multinacionais. O ciclo de grandes arrecadações fiscais está concluindo. As limitadas reformas fiscais, com aumento dos impostos sobre o petróleo e o gás extraídos pelas multinacionais, ofereceram uma vantagem passageira no marco de preços internacionais elevados. A crise mundial ameaça em especial o governo nacionalista de Equador, cujo petróleo financia, não só a economia nacional, mas também a dolarização, até agora mantida. Diante da crise do nacionalismo, a burocracia sindical latino-americana carece de independência política, situando-se no esteio das políticas de salvação do capital praticadas pelos governos. Não defende um programa próprio, propondo, por exemplo, a nacionalização e o controle operário das empresas falidas. As centrais sindicais sul-americanas apenas pediram aos chefes do Estado da região que exigissem garantia de manutenção dos empregos das empresas que recebem apoio governamental.
Nos países andinos, onde o movimento “bolivariano” teve a maior repercussão internacional, a peculiaridade do nacionalismo é o indigenismo, o protagonismo das massas rurais deslocadas às cidades, onde ocuparam o lugar ocupado no passado pelo proletariado industrial. As ideologias indigenistas compreendem um vasto arco, desde o retorno ao Inkário até a preservação das comunidades rurais originárias a partir de sua base produtiva (a pequena propriedade). Mas foi a pequena burguesia urbana a que impôs à massa indígena seu programa, o chamado “capitalismo andino”, que postula o entrosamento do meio agrário pré-capitalista com o capitalismo “global”, através da mediação do Estado. Assim, frustraram-se as promessas de uma revolução agrária.
Divididos e até enfrentados, os projetos capitalistas “latino-americanos” entraram em crise. A moeda comum Brasil-Argentina não passa de um recurso contábil para compensar saldos de pagamentos externos. A autonomia da ALBA é desmentida pelos compromissos simultâneos de seus países com outros acordos internacionais. O processo capitalista opera em favor da desintegração de América Latina. Brasil reforçou sua aliança financeira com os EUA e reduziu o consumo e o preço do gás boliviano. A Unasul é um projeto da burguesia brasileira para “integrar” uma indústria militar regional sob seu controle, e para impulsionar gastos em infraestrutura para suas empresas construtoras privadas. A CELAC (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos) é um âmbito falatório que sequer consegue se pronunciar contra os golpes (Paraguai ou Honduras), contra o embargo ianque a Cuba ou pela retirada das tropas estrangeiras do Haiti, sem falar na retirada das bases militares (Washington aumentará o contingente militar no Peru de 125 para 3.200 soldados a partir de 1° de setembro) ou no fim das manobras navais norte-americanas. As bandeiras “integracionistas” foram virando ficção política. O nacionalismo burguês fracassa novamente, como no passado, agora no marco de uma crise mundial inédita.
Com o impacto da crise mundial (e com a eleição de Obama) reclamou-se insistentemente o “fim da guerra fria na América Latina”. O apaziguamento entre os EUA e Cuba, a normalização de Cuba com a UE, serviriam para estabilizar politicamente à América Latina, opondo a integração política de Cuba à revolução latino-americana, oferecendo o fim do isolamento de Cuba. O destino de Cuba está, mais do que nunca, inserido no contexto latino-americano, e também na sua própria crise política interna, contextos que o governo de Raul Castro tenta “navegar” propondo uma espécie de “via chinesa”, com um papel central das Forças Armadas (que controlam mais de 60% da economia cubana). O contexto para uma transição ao capitalismo, como a ocorrida em Rússia e na China, porém, mudou internacionalmente: o mercado mundial tornou-se estreito demais para admitir um novo competidor (embora pequeno, como Cuba). O contexto ideológico internacional não mais é o do “fim do comunismo”, como em 1989-1991. Reivindicar o fim do bloqueio norte-americano e o reconhecimento incondicional da autodeterminação nacional cubana (começando pela devolução de Guantánamo e a saída das tropas ianques da ilha) poderia por Cuba em contato direto com a luta social latino-americana, não só com o capital mundial.
As FARC colombianas viraram um fator de crise política internacional, incluindo a mobilização bélica regional. Chávez, antes de sua morte, apoiou a “troca humanitária” de reféns e o reconhecimento do caráter de força beligerante das FARC, para depois convidá-las a se desarmar e libertar incondicionalmente seus reféns, se reconciliando com a direita, uma pressão para o desarme unilateral da guerrilha. A experiência de luta armada das FARC (que chegaram a controlar quase um terço do território colombiano) está politicamente esgotada, mas isto está sendo usado para dar uma vitória política aos paramilitares colombianos que entraram no governo para apagar seu passado criminoso e se reciclar no “Estado de Direito”. As negociações de paz que se levam a cabo em Cuba, sob o patrocínio do governo castrista, se integram nesse marco político reacionário. Na América Central, as guerrilhas (FSLN e FMLN) abandonaram as armas para se somar à “política institucional” (burguesa) e gerir o Estado capitalista.
No gigante da América do Sul, o quarto mandato presidencial do PT começou sob o signo: a) da crise econômica e política; b) da tentativa de orquestrar um ataque estrutural contra as conquistas trabalhistas e as condições de vida dos assalariados brasileiros, com vistas ao “equilíbrio fiscal” e ao rebaixamento do “custo Brasil” (recuperação da taxa de lucros), para gerar uma nova corrente de investimentos externos e internos. As exportações de manufaturados (base principal da produção industrial) se situaram em 2014 em US$ 6 bilhões abaixo de 2008, um retrocesso absoluto de 17%. A balança comercial teve um déficit de US$ 3,93 bilhões, o primeiro em 14 anos. O déficit comercial em bens industriais (importações/exportações de bens manufaturados) subiu 150% em cinco anos (só Arábia Saudita fez pior na economia mundial). A reprimarização da economia brasileira está cobrando seu preço, econômico e também ambiental: a extração sem freio de minérios, a produção de soja e frango, está danificando sem volta os ecossistemas, em especial os aquíferos. Os indicadores industriais de produção, faturamento, uso da capacidade instalada, etc., embicaram para baixo. A indústria automobilística brasileira vai operar este ano e também em 2016 com estimados 50% de sua capacidade instalada. No balanço econômico dos primeiros quatro anos de Dilma Rousseff, o crescimento acumulado do PIB caiu de 19,6% para 7,4% (uma redução de 60% em relação a Lula I e II); a taxa de inflação acumulada aumentou de 22% para 27% (aumento de 20%); o déficit acumulado em conta corrente pulou de US$ 98,2 bilhões para US$ 268 bilhões, um aumento de 170%.
Dilma Rousseff buscou absorver a pressão dos "mercados", cuja principal preocupação é que o país tenha a capacidade de honrar o pagamento da dívida externa e aumentar os “incentivos” para que o capital especulativo não escape. Entre os “incentivos” não figuram somente o congelamento de salários e a redução dos gastos sociais. Um lugar importante é ocupado pela liberalização do comércio exterior e a mudança da política para o petróleo. Os esforços do governo para assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia, para debilitar o Mercosul e “liberar” a política brasileira da Argentina, foram até agora bloqueados pelos governos da Argentina e Uruguai. Na questão do petróleo, o governo Dilma cedeu à pressão para que a Petrobras atendesse os interesses de seus acionistas privados (aumento do preço da gasolina e uma política de maiores lucros e distribuição de dividendos). A dívida pública do Brasil supera 60% do PIB; pior é a situação da dívida privada, que está perto de 100% do PIB. Em que pesem os superávits primários que totalizaram, entre 2002 e 2013 e em valores correntes, R$ 1,082 trilhão, a dívida interna pulou para quase três trilhões de reais (US$ 1,2 trilhão). Nesse quadro, a entrada de capital especulativo para aproveitar a diferença das taxas de juros brasileiras com as dos mercados internacionais foi forte nos últimos anos, mas agora enfrenta uma reversão de tendência. A fuga de capitais já resultou numa significativa desvalorização do real, da ordem de 30%.
O escândalo de corrupção da maior empresa do país, a Petrobrás, adquiriu dimensões imprevistas, afetando inclusive as contas públicas: a empresa (cujo valor de mercado caiu de R$ 410 bilhões em 2011 para R$ 160 bilhões atualmente) é responsável por 10% da arrecadação de impostos do país. Segundo a Merrill Lynch, o escândalo vai custar 0,86% do PIB. O esquema de propinas multimilionárias para a concessão de contratos públicos envolve as nove maiores empresas construtoras do país (Camargo Correa, Engevix, Galvão, Mendes Júnior, IESA, OAS, Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC). O banco Morgan Stanley calculou que as perdas da petrolífera devido ao esquema seriam de R$ 21 bilhões (aproximadamente US$ 8 bilhões). Em torno da Petrobras gira a indústria da construção naval, a construção pesada e outros segmentos da economia brasileira. As nove empresas participantes do esquema corrupto (o “cartel”) faturaram, em 2013, R$ 33 bilhões com contratos públicos, financiaram candidatos a deputados com R$ 721 milhões, e candidatos a senadores com R$ 274 milhões: 70% dos congressistas eleitos em 2014 receberam doações das grandes empresas. Mais da metade dos membros da comissão parlamentar de investigação (CPI) do petrolão receberam doações milionárias das empresas sentadas no banco dos réus. O “clube” tinha dezesseis sócios fixos, e seis empresas “ocasionais”. Numa demonstração de “soberania”, o Procurador Geral do Brasil, Rodrigo Janot (ameaçado de morte), foi buscar ajuda para as investigações junto ao FBI norte-americano. As vozes que reclamam a completa privatização da Petrobras já se fazem ouvir. Mas não ainda as que reclamam sua completa estatização sob controle operário.
A queda dos preços internacionais do petróleo seria, para alguns analistas, a grande oportunidade para uma reativação da economia mundial, mas o que se anuncia é um período de retrocesso para os países que sobrevivem graças ao lucro da extração mineral. O barril de petróleo havia subido até 150 dólares – com uma recaída muito forte em 2009, que levou até uma cotação média de 100 dólares antes da queda para 50-55 dólares. A queda nos preços internacionais repercute pouco nos preços internos, sendo inócua para reativar o consumo final. A maior parte dos governos do mundo precisa dos impostos aos combustíveis para fazer frente ao pagamento da dívida pública e ao resgate dos bancos. O impacto negativo sobre a taxa de lucro das companhias petroleiras é forte, devido ao aumento dos custos que acompanhou a elevação dos preços, pela distribuição da renda entre todos os setores que intervêm na produção, pela incorporação de jazidas que exigem processos mais caros, ou pelo incremento dos investimentos. A queda mundial do preço do petróleo replica a de todas as matérias primas, dos minerais e dos alimentos. Esta guinada modifica o curso da crise econômica mundial porque bate em cheio na periferia, no mesmo momento em que a crise se faz mais aguda na Europa e no Japão.
A queda do preço internacional do petróleo foi atribuída à queda da demanda da China e Europa, ao forte aumento da produção de combustíveis não convencionais nos EUA, e à recuperação da produção na Líbia e no Iraque. A crise de superprodução na China é decisiva, porque o país é um fator fundamental na expansão do mercado mundial. O lucro do setor petroleiro havia aberto espaço para a produção de gás e petróleo não convencionais nos EUA. No mercado norte-americano o preço do gás caiu para o limite da rentabilidade de sua exploração. A diminuição do preço da gasolina – e o do gás para a indústria e a calefação – é anulada pelo fechamento de jazidas, cuja produtividade é declinante. O boom dos combustíveis nos EUA foi impulsionado pelas baixas taxas de juros, que permitiram financiar investimentos que com taxas de juros maiores seriam proibitivos. A estratégia saudita de elevar a produção para inviabilizar os novos investimentos resultou na interrupção de boa parte da exploração norte-americana de petróleo de xisto, descartando novos investimentos e provocando a demissão de dezenas de milhares de trabalhadores. Os elos fracos da crise petroleira internacional são Brasil, Rússia e Venezuela. Os custos da Petrobras e da PDVSA superam os preços internacionais atuais do petróleo; nestes níveis de preço, ambas as empresas seriam inviáveis. O problema é que, além disso, possuem dívidas gigantescas e são fontes de financiamento de Estados com dívidas ainda maiores. As ações da Petrobrás cotizam em menos da metade de sua média histórica.
No Brasil, o déficit público atingiu 5% do PIB em 2014, o maior nível desde 2003. O déficit comercial e em conta corrente são os piores dos doze anos do governo do PT. O déficit das contas externas alcançou 3,7% do PIB, 83,56 bilhões de dólares, um nível que não era alcançado desde 2001-2002 (quando da crise da Argentina). Setores graúdos do grande capital brasileiro começaram por isso a propor uma mudança de eixo econômico externo. Luiz Alfredo Furlan, representante do agronegócio (e ex-ministro de Lula) propôs abertamente a saída do Brasil do Mercosul e a assinatura de acordos bilaterais com os EUA e a UE. Os 10% mais ricos da população continuam a deter 60% dos ingressos; 0,5% da população detêm 20% da renda nacional. A desigualdade social se manteve estável durante a era Lula-Dilma, apresentando ligeira tendência a aumentar. Sem falar em que basta olhar ao redor para constatar as péssimas condições de vida da imensa maioria da população brasileira, que nas últimas décadas não avançou, pelo contrário, em matéria de saneamento básico, saúde ou educação, uma deterioração que foi o detonante das jornadas massivas de luta de junho de 2013.
O anúncio da equipe econômica do novo governo recebeu as boas vindas do grande capital. Joaquim Levy, entre 2010 e 2014 foi presidente do Bradesco Asset Management, que administra mais de 130 bilhões de dólares. Na Universidade de Chicago foi discípulo do time de Milton Friedman, chefão dos “Chicago Boys” e pai declarado do neoliberalismo mundial. Como responsável político no Fundo Monetário Internacional (entre 1992 e 1999), Levy foi advogado e executor de programas de austeridade nos mais diversos países. Durante o governo FHC, Levy atuou como estrategista econômico, envolvido na privatização de empresas públicas e na liberalização do sistema financeiro, que facilitou a fuga de quinze bilhões de dólares anuais. Levy é um membro eminente da oligarquia financeira do Brasil. Em outra pasta estratégica, Kátia Abreu, no ministério da Agricultura, sustenta que o latifúndio não existe no Brasil. Foi dirigente da Confederação Nacional de Agricultura e, desde Tocantins, é agente do lobby da soja, outro setor em queda livre internacional.
Na área trabalhista, o seguro-desemprego, a pensão por morte, e outros benefícios sociais básicos, terão sua concessão tornada muito mais difícil. A desoneração da folha de pagamentos, praticada desde 2008, não reverteu a política de demissões, ao contrário, acentuou-a. Um cruzamento de dados demonstrou que R$ 5,5 bilhões (23,1% de um montante impositivo de R$ 23,8 bilhões sobre a indústria) deixaram de ser pagos por setores empresariais que demitiram mais do que contrataram desde 2012. E Levy propõe não só manter as desonerações, mas também aprofundar as facilidades para demitir. A capacidade instalada da indústria está em seu pior nível de utilização média desde 2009, sendo que as siderúrgicas, com 68,6% de uso da sua capacidade produtiva, são as que mais puxam o índice para baixo. Uma nova fase da luta de classes se abriu. No raiar do novo ano, os trabalhadores da Volkswagen do ABC paulista entraram em greve por tempo indeterminado pela readmissão de 800 dispensados. A empresa descumpriu acordo firmado em 2012, que previa a estabilidade dos funcionários até 2016. Outros 244 trabalhadores foram demitidos na Mercedes Benz. A 12 de janeiro, os metalúrgicos do ABC realizaram uma grande manifestação: mais de 20 mil pessoas ocuparam as faixas da Rodovia Anchieta, com trabalhadores da Volks, Mercedes, Karmann Ghia. Os metalúrgicos da Volks mantiveram o movimento até fazer a patronal recuar nas demissões (o sindicato admitiu, no entanto, um PDV, plano de demissão voluntária). Em São José dos Campos, uma greve de seis dias dos operários da General Motors também barrou as demissões.
No México, o massacre de 43 estudantes entre 18 e 21 anos, confessado por traficantes de drogas detidos (revelação em que os pais das vítimas se recusam a acreditar até que haja provas) na noite de 26 de setembro de 2014 em Iguala, no estado de Guerrero, quando policiais locais atacaram alunos da combativa Escola de Magistério de Ayotzinapa, por ordem do prefeito agora detido, suscitou um amplo movimento de repúdio nacional que a repressão não conseguiu fazer retroceder. Depois de quase um mês e meio, a Procuradoria Geral mexicana quis encerrar o assunto com base na confissão de três bodes expiatórios oferecidos pelo narcotráfico, em que pese a clara implicação da polícia e até do exército no massacre. A mobilização não se detém, e está levando à crise o governo do PRI (Peña Nieto) e sua complacente oposição, desestabilizando o imenso país que faz fronteira com todo o sul dos EUA, onde a maioria da população é de origem mexicana ou latino-americana. O salário mínimo do México, integrado à economia dos EUA através do NAFTA, é, graças a isso, o mais baixo do continente. Em junho haverá eleições parlamentares: a crise política mexicana apenas começou, com projeção internacional explosiva. Inclusive sobre seu vizinho do sul, a Guatemala governada pelo general genocida Otto Pérez Molina, que governa na base de estados de sitio regionais (e de assassinatos de lideranças camponesas e indígenas) para manter 60% das terras cultiváveis do país nas mãos de empresas extrativas multinacionais.
No outro extremo da América Latina, na Argentina, a morte (provavelmente assassinato) do procurador do Estado na causa AMIA (o atentado de 1994 contra a associação mutualista judia que deixou mais de 400 vítimas, 87 mortais), sistematicamente encoberta pelos governos nos últimos vinte anos, está expondo a decomposição assassina dos serviços secretos herdados da ditadura militar, intocados pela “democracia”, e sua cumplicidade com os serviços de inteligência estrangeiros (principalmente a CIA e o Mossad), configurando uma crise na própria coluna vertebral do Estado. No meio da crise política e institucional, projeta-se politicamente a Frente de Esquerda, encabeçada pelo Partido Obrero, uma alternativa de caráter classista e revolucionário, projeção confirmada pelos comícios eleitorais de Mendoza e Salta (as eleições gerais serão em outubro deste ano). Argentina espelha uma situação em que as condições objetivas (econômicas, sociais e políticas) do continente, no marco da crise mundial, abrem a possibilidade para a construção de uma alternativa de esquerda revolucionária.
Expediente do Tribuna Classista: e-mail: tribunaclassista@hotmail.com
Blog: http://tribunaclassista.blogspot.com.br/
domingo, 8 de março de 2015
sábado, 21 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
O REAJUSTE DO AJUSTE BRASILEIRO
Osvaldo Coggiola
O quarto mandato presidencial do PT começou sob o signo: a)
da crise econômica e política; b) da tentativa de orquestrar um ataque estrutural contra
as conquistas trabalhistas e as condições de vida dos assalariados brasileiros,
com vistas ao “equilíbrio fiscal” e ao rebaixamento do “custo Brasil”
(recuperação da taxa de lucros), supostamente para gerar uma nova corrente de
investimentos externos e internos. As condições para enfrentar as primeiras e
desferir o segundo estão fortemente condicionadas pelo processo e os resultados
eleitorais de 2014.
No ano passado, as previsões oficiais de crescimento
econômico (1% do PIB) não ocultaram as previsões mais realistas do “mercado”,
que anteciparam certeiramente um retrocesso econômico (queda do PIB per capita,
com 0,1% de crescimento). As exportações de manufaturados (base principal da
produção industrial) se situaram em 2014 em US$ 6 bilhões abaixo de 2008, um
retrocesso absoluto de 17%. A balança comercial teve um déficit de US$ 3,93
bilhões, o primeiro em 14 anos. O déficit comercial em bens industriais
(importações/exportações de bens manufaturados) subiu 150% em cinco
anos de suposta “não crise” (só Arábia Saudita fez pior na economia mundial –
graças à sua monstruosa renda petroleira, se ne frega, por enquanto).
Nas condições de crise mundial, a reprimarização da economia
brasileira está cobrando seu preço. Como apontou um economista da Consultoria
LCA, “as cotações recentes do real, das ações na Bolsa e dos títulos públicos
de longo prazo já são negociadas como se o Brasil não fosse mais um país com
grau de investimento” (um “título” habilitante para investimentos externos, que
os órgãos financeiros internacionais lhe conferiram em 2008). O capital mundial
lhe está baixando o polegar ao país, o movimento típico prévio à fuga maciça de
capitais, e ao consequente default.
Entre Black Bloc e Black Rock
Os indicadores industriais de produção, faturamento, uso da
capacidade instalada, etc., embicaram para baixo. A ausência de investimentos
(estatais ou privados) levou à crise os dois setores básicos da sobrevivência
social: água e energia. Já estão sendo realizados rodízios em ambos os setores,
em previsão de um apagão. Brasil desperdiça 37% de sua água tratada (na Europa,
esse índice se situa entre 7% e 10%). Quanto à energia, o novo ministro de
Minas e Energia, Eduardo Braga, literalmente encomendou-se a Deus (que seria,
como se sabe, brasileiro). As distribuidoras de energia (setor privatizado pelo
“neoliberalismo” tucano, o PT se limitou a “regula-lo”, com os resultados que
agora se constatam) estão em situação falimentar. Para evitar cortes imediatos
de fornecimento, o governo teve de entrar com empréstimos diretos (70% do
auxílio às empresas geradoras e distribuidoras de energia foi realizado através
de bancos públicos) e também como fiador de empréstimos em bancos privados.
Nacionalizar todo o setor (“produtores” e distribuidores), que está saqueando a
população e afundando o país, nem pensar.
O episódio eleitoral de 2014 ficou marcado inicialmente pela
inesperada ascensão eleitoral de Marina Silva, cuja única “proposta concreta”
era a de um governo “técnico”, isto é, um “governo com as melhores cabeças do
país”, qualquer que fosse sua origem político-partidária ou não partidária. Que
semelhante engendro (um não partido + uma não proposta) chegasse a encabeçar as
sondagens eleitorais foi um índice da falência do sistema político brasileiro,
isto é, da crise da chamada “transição política”. A tendência quase foi
encampada pelo PT, que chegou a cogitar em propor Lula como chefe da Casa Civil
(transformado numa espécie de primeiro ministro), como garante do poder e
governo de fato, transformando Dilma numa rainha de Inglaterra com data de
validade, uma “aventura” híbrida de presidencialismo parlamentarista (ou
parlamentarismo presidencialista). Não foi necessário, pois, carente de solidez
e sem mais recursos que alguns despautérios reacionários primários dirigidos à
sua base eleitoral evangélica, a candidatura de Marina acabou caindo, considerada
como uma aventura política por boa parte do empresariado.
Em um contexto de inflação crescente, para “salvar a
economia” até as eleições gerais o governo petista apelou novamente para a
receita da catástrofe: afrouxamento das regras financeiras (encaixes e
depósitos compulsórios dos bancos) para incrementar ainda mais o crédito ao
consumo, em condições de default potencial no consumo privado (63% das famílias
estão endividadas, uma percentagem que é bem maior nas grandes cidades, com um
20% do total das famílias, ou 33% dos endividados, em situação de atraso ou
inadimplência).
Em agosto de 2014, o Banco Central reduziu em R$ 15 bilhões
o capital mínimo exigido para as operações bancárias, o que se somou ao corte
de R$ 10 bilhões realizado em julho: com isso, os bancos puderam adicionar ao
sistema de empréstimos a bela soma de R$ 225 bilhões, nove vezes o valor
subtraído do capital mínimo exigido pelas normas de “regulação” financeira, uma
verdadeira “fuga para frente” que não resolve nenhum problema estrutural. No
balanço econômico dos primeiros quatro anos de Dilma, o crescimento acumulado
do PIB caiu de 19,6% para 7,4% (uma redução de 60% em relação a Lula I e II); a
taxa de inflação acumulada aumentou de 22% para 27% (aumento de 20%); o déficit
acumulado em conta corrente pulou de 98,2 bilhões de dólares para 268 bilhões
da mesma moeda, um aumento de 170%. A política capitalista está levando o
Brasil para um buraco fundo de sua história econômica.
No entanto, na ausência de um ativismo popular independente,
as eleições foram confinadas a uma disputa entre os setores dominantes. O
empresariado fez mais doações à campanha pela reeleição de Dilma Rousseff (R$
300 milhões) do que à do governador mineiro Aécio Neves. Esse fator foi
decisivo: os votos derivados do “Bolsa Família” são considerados estáveis (27
milhões, aproximadamente) e perfazem só metade do eleitorado que deu a vitória
ao PT. Além da estabilidade política, a grande patronal levou em conta que, em
matéria de repressão (militarização e prisões, “lei antiterrorista” em
andamento parlamentar) o governo petista superou todos seus predecessores, com
a vantagem adicional de que o partido controla a principal central sindical (a
CUT) e tem laços com os movimentos populares, ou seja, um poder de cooptação de
lideranças bem superior ao dos tucanos.
Dilma Rousseff, além disso, anunciou com significativa
antecedência que abriria mão, em um segundo mandato, da equipe econômica
precedente. Buscou, desse modo, absorver a pressão dos "mercados",
cuja principal preocupação era que o Banco Central tivesse a capacidade de
honrar o pagamento da dívida externa e aumentar os “incentivos” para que o
capital especulativo não escapasse do país. Entre os “incentivos” não figuram
somente o congelamento de salários e a redução dos gastos sociais. Um lugar
importante é ocupado pela liberalização do comércio exterior e a mudança da
política para o petróleo. Os esforços do governo para assinar um acordo de
livre comércio com a União Europeia, para debilitar o Mercosul e assim
“liberar” a política brasileira da argentina, foram bloqueados pelo governo
platino, oposto a essa política (como também o é o governo do Uruguai).
Na questão do petróleo, o governo Dilma enfrentou a pressão
para que a Petrobras atendesse os interesses de seus acionistas privados
(aumento do preço da gasolina e uma política de maiores lucros e distribuição
de dividendos) e desse mais espaço para as empresas petrolíferas internacionais
na exploração da plataforma marítima (pré-sal). A ascensão eleitoral inesperada
da oposição do PSDB (candidatura de Aécio), na última fase da campanha,
respondeu a essa tendência capitalista. A oposição tucana está contra o regime
de partilha na exploração do petróleo e contra a legislação que obriga a
presença da estatal em todos os poços em exploração, na intenção de abrir mais
a exploração ao capital estrangeiro. A redução dos investimentos da petroleira
liberaria também mais capital para a distribuição de dividendos aos acionistas
privados externos da Petrobrás, nucleados basicamente nos fundos de pensão
norte-americanos e no fundo de investimentos Black Rock.
Nessas condições, os projetados vinte anos de governo
petista, que alguns sociólogos chegaram a qualificar como “lulismo”, reedição
“modernizada” e “democrática” dos vinte anos varguistas, ameaçaram afundar. O
governo petista, diante disso, se pronunciou rapidamente em favor de atender as
reivindicações petroleiras do grande capital, e mandou às favas as promessas
feitas logo depois da explosão social de junho-julho de 2013.
Eleição e Petrolão
O resultado eleitoral de outubro, por isso, não expressou a
rebelião popular de 2013. Ficaram nos primeiros lugares os agentes políticos
principais das classes dominantes. Abriu-se, nessas condições, uma nova
transição política e um período de crise. No primeiro turno, a proximidade dos
votos das candidaturas da situação e a da oposição, 41,5% para Dilma (quase 47%
em 2010) contra 33,6% do PSDB (32,6% há quatro anos), com Marina Silva indo de
19,3% para 21,3%, expressou uma derrota política do governo. Embora vencendo
nos estados de Minas Gerais e de Bahia, ele foi severamente derrotado em São
Paulo e Rio Grande do Sul, este último um marco da ascensão eleitoral do PT nas
últimas décadas do século passado. Dilma Rousseff obteve a menor proporção de
votos majoritários desde que Lula ganhou a presidência em 2003.
As eleições não traduziram a revolta popular de 2013 contra
os aumentos das tarifas de transporte e o colapso dos serviços públicos
essenciais. Os partidos e coligações se beneficiaram desproporcionalmente das
contradições do movimento popular, em cujo seio opera a burocracia sindical, em
especial a governista CUT; o oportunismo eleitoral de um setor da esquerda, que
tem somente olhos para o carreirismo parlamentar; a debilidade dos setores
classistas nos sindicatos e na juventude. Sob estas condições, as eleições
funcionaram como um espelho distorcido da realidade. As sondagens eleitorais
privadas e os meios de comunicação, mais uma vez, mostraram seu caráter
manipulador, rebaixando e levantando as chances de cada candidato, de acordo
com as circunstâncias e conveniências das classes dominantes. A volatilidade
pré-eleitoral foi um forte sinal da enorme desconfiança do eleitorado diante
das opções apresentadas.
Confirmaram assim sua hegemonia política as forças
responsáveis pela recessão - especialmente as demissões e suspensões na
indústria automobilística - a inflação e o aumento do desemprego industrial.
Dilma Rousseff começou seu segundo mandato depois de vencer o 2º turno com
51,6% dos votos. Nas eleições presidenciais anteriores, Lula havia obtido 61,3%
e 60,8% (2002 e 2006) e a própria Dilma, 56% (2010) dos votos, no segundo
turno. No berço histórico do PT, o ABC paulista, Dilma foi derrotada. Depois da
vitória eleitoral, sua primeira medida foi aumentar as taxas de juros, para
“acalmar os mercados”, isto é, aumentar a dívida pública. O capital financeiro
já tem uma taxa de lucro entre 40% e 50% maior que a média dos lucros do país.
A segunda foi oferecer o ministério da Fazenda ao presidente do Bradesco, que
rechaçou a oferta.
A hegemonia política reacionária se encontra em descompasso
com a situação econômica do país. A dívida pública do Brasil supera 60% do PIB;
pior ainda é a situação da dívida privada, que está perto de 100% do PIB. Em
que pesem os superávits primários que totalizaram, entre 2002 e 2013 e em
valores correntes, R$ 1,082 trilhão, a dívida interna pulou para quase três
trilhões de reais (US$ 1,2 trilhão). Nesse quadro, a entrada de capital
especulativo para aproveitar a diferença das taxas de juros brasileiras com as
dos mercados internacionais tem sido extraordinária nos últimos anos, mas agora
enfrenta uma reversão de tendência. A fuga de capitais já resultou em uma
desvalorização do real muito significativa, da ordem de 30%.
O medo da fuga de capitais exerce uma enorme pressão sobre a
taxa de juros no Brasil, que por sua vez tem um impacto negativo sobre o
financiamento da indústria e sobre o crédito ao consumo, que se encontra em
níveis muito altos. A propalada "ascensão social para a classe média"
é uma consequência do endividamento sem precedentes das famílias de todas as
classes sociais. O Brasil pós-eleitoral é o do ajuste mais ajustado e o da
acentuação do conflito de classe. A filiação petista da presidente esconde o
verdadeiro caráter do seu governo, que é, em primeiro lugar, uma aliança do PT
com o PMDB, o partido eleitoralmente mais importante do país, criado sob a
ditadura militar, e, por outro lado, com a direita evangélica, o que impõe à
coalizão oficial uma agenda clerical e confessional. Os votos obtidos pela
situação foram expressão dessa coalizão. O chamado "governo do PT" é
um eufemismo, que ajuda a ornamentar essa coalizão com enfeites progressistas.
Os acontecimentos mais marcantes de corrupção durante a administração petista
estão relacionados com a necessidade de manter uma frente que possibilite uma
maioria parlamentar.
O escândalo de corrupção da maior empresa do país, a
Petrobrás, a chamada Operação Lava Jato, adquiriu dimensões imprevistas. O
“mensalão” havia sido definido como “o maior” e “o último” dos escândalos de
corrupção; o da Petrobrás lhe tirou, com folga, ambos os títulos. O esquema de
propinas multimilionárias para a concessão de contratos públicos envolve as
nove maiores empresas construtoras do país (Camargo Correa, Engevix, Galvão,
Mendes Júnior, IESA, OAS, Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC) que já têm vários
diretores presos. Os beneficiários, os diretores da empresa estatal, desviavam
as propinas para as contas dos partidos da coalizão de governo (PT, PMDB, PP, e
algum outro da “base aliada”) e, claro, até suas próprias contas. Não é
necessário dizer que as propinas eram repassadas pelas empreiteras às contas
(superfaturadas) das obras contratadas, configurando um esquema conjunto de
saque multimilionário dos cofres públicos.
O banco Morgan Stanley calculou que as perdas da petrolífera
devido ao esquema seriam de R$ 21 bilhões (pouco menos de US$ 10 bilhões). As
empresas envolvidas no esquema corrupto demitiram mais de 12 mil trabalhadores
em menos de dois meses, sem indenização, e deixando inconclusas enormes obras
em andamento (Comperj, no Rio de Janeiro; Refinaria Abreu e Lima, em
Pernambuco). Um dos funcionários da Petrobras comprometidos, o aposentado Pedro
Barusco, ex Diretor de Serviços (um cargo de segundo ou terceiro escalão),
apresentou-se espontaneamente à polícia, comprometendo-se a devolver, de seu
bolso, US$ 100 milhões, R$ 250 milhões (mas não os juros, lucros, produzidos
por esse dinheiro nos últimos doze anos). Se esse foi o lucro de um
“coadjuvante”... Este é o partido e o governo cuja vitória eleitoral os
“progressistas” de toda a América Latina definiram como “continuidade do
processo de mudança”.
A Petrobrás (cujo valor de mercado caiu de R$ 410 bilhões em
2011 para R$ 160 bilhões) é responsável por 10% da arrecadação de impostos do
país: o escândalo terá impacto nas contas públicas. Em torno da Petrobras, além
disso, gira a indústria da construção naval, a construção pesada e outros
segmentos importantes da economia brasileira. As nove empresas (o “cartel”)
faturaram, em 2013, R$ 33 bilhões com contratos públicos, financiaram
candidatos a deputados com R$ 721 milhões, e candidatos a senadores com R$ 274
milhões (em 2010): 70% dos congressistas eleitos em 2014 receberam doações das
grandes empresas. O “clube”, ao que parece, tinha dezesseis sócios fixos, e
seis empresas “ocasionais”.
O juiz envolvido na causa declarou que o “cartel” operava
desde “pelo menos” há quinze anos, quando o governo (e a Petrobras) estava nas
mãos do PSDB. O “propinoduto” é um “modelo (histórico) de negócios”. O
intermediário do esquema (Alberto Youssef) já havia estado preso em 2003 (e
outras vezes) por crimes semelhantes, e está metido em outros escândalos
menores que beneficiaram o PSDB. O papel do “doleiro”, neste e outros
escândalos (como os de Marcos Valério), é enviar dinheiro para ser aplicado no
exterior sem pagar impostos; entrar com milhões de dólares para pagar as
propinas, que não saem dos caixas oficiais das empresas, mas de suas offshore,
utilizadas para fraudar o fisco e dar segurança aos recursos ilícitos; driblar
o sistema monetário nacional, que controla a compra e venda de moedas
estrangeiras, criando um mercado negro de compra e venda de dólares e euros.
Nesse contexto de crise, os resultados das recentes eleições
presidenciais merecem uma segunda leitura: a de que consagraram a um candidato
da oposição (Aécio Neves), com 49% dos votos, como alternativa “legítima” em
caso de crise institucional e de eleições antecipadas. Isto tem seu correlato
nos outros escalões governamentais que foram submetidos ao escrutínio
eleitoral. Os cinco estados comandados doravante pelos tucanos tiveram, em
2013, uma arrecadação de R$ 545 bilhões; os cinco estados do PT, só R$ 114
bilhões; os sete estados do PMDB (o “aliado” vira casaca por excelência do PT),
R$ 288 bilhões. O PT elegeu sua menor bancada de deputados federais (70) desde
2002 (quando elegeu 91 deputados). Nas assembleias estaduais, enquanto o PMDB
praticamente manteve seus eleitos em relação a 2010 (142, contra 149 naquele
ano), o PT caiu de 148 para 108 eleitos. O PT perde fôlego, enquanto crescem
siglas neonatas absolutamente manipuláveis pela burguesia (que as financia
100%).
Petróleo e Crise
Na primeira votação parlamentar depois da reeleição de
Dilma, a proposta do governo de submeter as “decisões governamentais de
interesse social” à opinião de conselhos populares, a presidente reeleita
sofreu uma derrota acachapante, com base na oposição conjunta PMDB-PSDB. Não há
porque duvidar que essa aliança podre será repetida na votação acerca do debate
da reforma política, para a qual o governo propõe um plebiscito (um meio
antidemocrático) e o PMDB uma votação parlamentar seguida de um referendo (um
meio mais antidemocrático ainda).
A negativa do presidente do Bradesco em assumir a Fazenda,
por outro lado, não foi um caso isolado: o PMDB, o principal partido da base
aliada do governo, propôs para presidente da Câmara seu deputado Eduardo Cunha,
que apoiou abertamente o opositor Aécio Neves no segundo turno. Tarso Genro
interpretou essa proposta como primeiro passo em direção da ruptura da aliança
governamental. Desenvolve-se assim uma crise política que marca, logo de cara,
o novo mandato presidencial.
Só com muita ingenuidade seria possível afirmar, como foi
feito, que “a Operação Lava Jato encerra definitivamente o ciclo de impunidade
do modelo político em vigor”. A “esquerda”, porém, denunciou um golpe
judiciário em andamento, sem ousar, como sempre, dar nome aos bois. Saudou, ao mesmo
tempo, a “corajosa” decisão da Presidente em ir fundo nas investigações (mas
não era um golpe?). Na sua vertente “intelectual” e sabidinha, afirma que a
corrupção faz parte dos mecanismos do Estado capitalista, desculpando
objetivamente os corruptos (petistas ou não); afinal, os culpados não são eles,
mas o Estado (quem é que resiste a uma boa mamata? Afinal, “ninguém é de
ferro...”).
O papel da esquerda (do PT ou de fora dele, que se situa
nessa seara argumentativa) é o de ocultar, até com argumentos “marxistas” (o
tal do Estado que corrompe até os santos), o papel da corrupção como elemento
central da política de aliança estratégica do PT com a burguesia, e até de
integração social da burocracia petista e/ou cutista nas fileiras da própria
burguesia. A argumentação de que a denúncia da corrupção favorece à direita (Veja,
Globo e outros) e ao imperialismo (feita inclusive por gente que, noutros
fóruns, declara que o conceito de imperialismo carece de atualidade teórica)
retrata uma esquerda que já perdeu até a noção mais elementar do que algum dia
justificou sua existência. E, em alguns casos, encobre as mamatas grandes para
preservar suas próprias mamatinhas...
O escândalo do “petrolão” tem um pano de fundo
potencialmente catastrófico. Ainda que se afirme que a queda dos preços
internacionais do petróleo seria a grande oportunidade para uma reativação da
economia mundial, na verdade o que se anuncia é um período catastrófico para os
países que sobrevivem à crise graças ao elevado lucro da extração mineral em
geral. O barril de petróleo havia subido até 150 dólares – com uma recaída
muito forte em 2009, que levou até uma cotação média de 100 dólares antes da
queda para 75-55 dólares. O declínio dos preços foi superior, em alguns casos,
a 25%. A mudança nos preços internacionais repercute pouco nos preços internos,
sendo inócua para reativar o consumo final. A maior parte dos governos do mundo
precisa dos impostos aos combustíveis para fazer frente ao pagamento da dívida
pública e ao resgate dos bancos.
A queda de preços tem um impacto negativo sobre a taxa de
lucro das companhias petroleiras, devido ao aumento dos custos que acompanhou
previamente a elevação dos preços, pela distribuição da renda entre todos os
setores que intervêm na produção, pela incorporação de jazidas que exigem
processos mais caros, ou pelo incremento dos investimentos. A queda mundial do
preço do petróleo replica a de todas as matérias primas, dos minerais e dos
alimentos. Esta guinada modifica o curso da crise econômica mundial porque bate
em cheio na periferia, no mesmo momento em que a crise se faz mais aguda na
Europa e no Japão.
A queda do preço internacional do petróleo foi atribuída à
queda da demanda da China e Europa, ao forte aumento da produção de
combustíveis não convencionais nos EUA, e até a uma recuperação da produção na
Líbia e no Iraque. A crise de superprodução na China, motivadora da queda, é
decisiva, porque o país é um fator fundamental na expansão do mercado mundial.
A China se encontra, além disso, às vésperas de uma explosão financeira. O
elevadíssimo lucro do setor petroleiro havia aberto espaço para a produção
custosa de gás e petróleo não convencionais nos EUA. No mercado
norte-americano, agora, o preço do gás caiu para o limite de rentabilidade de
sua exploração. A diminuição do preço da gasolina – e o do gás para a indústria
e a calefação – é anulada pelo fechamento de jazidas, cuja produtividade é
declinante. O boom dos combustíveis nos EUA foi impulsionado pelas baixíssimas
taxas de juros, que permitiram financiar investimentos que com taxas de juros
maiores seriam proibitivas.
Os elos fracos da crise petroleira internacional são Brasil,
Rússia e Venezuela. Os custos da Petrobrás e da PDVSA superam os preços
internacionais atuais do petróleo; nestes níveis, ambas as empresas seriam
inviáveis. O problema é que, além disso, possuem dívidas gigantescas e são
fontes de financiamento de Estados com dívidas ainda maiores. As ações da
Petrobrás cotizam em menos da metade de seu pico; o país foi advertido da
catástrofe em andamento com antecedência, quando foi à falência o aventureiro
capitalista de Lula-Dilma, o inefável Eike Batista, vendedor de vento que,
segundo The Economist, foi “o homem que mais dinheiro ganhou com o power
point depois de Bill Gates”.
A crise petroleira mundial se projeta na tela do declínio
acentuado da economia nacional, acrescentando um componente explosivo. O
resultado fiscal primário acumulado de 2014 (R$ 10 bilhões) foi o pior desde
1997. O rombo das contas públicas (déficit público) atingiu 5% do PIB em 2014,
o maior nível desde 2003. O déficit comercial e em conta corrente são os piores
dos doze anos de “governo popular”. O déficit das contas externas alcançou 3,7%
do PIB, 83,56 bilhões de dólares, um nível que não era alcançado desde 2001-2002
(quando da crise da Argentina) que, naquele momento, derrubou o governo de FHC.
Setores graúdos do grande capital começaram por isso a
propor uma mudança de eixo econômico externo. Luiz Alfredo Furlan,
representante do agronegócio (e ex-ministro de Lula) propôs abertamente a saída
do Brasil do Mercosul e a assinatura de acordos bilaterais com os EUA e a UE, o
que também propõe Celso Lafer, ideólogo “internacional” do PSDB. Vai se
formando um consenso. O PT busca adaptar-se a ele, anunciando medidas de ajuste
violentas (um “sistema único do trabalho”, que libera as demissões e a
flexibilização trabalhista). E manipula as contas fiscais (“contabilidade
criativa”) para assegurar o pagamento da dívida externa, que está comprometido,
em especial devido à dívida privada.
A virada à direita do governo Dilma tem essa base. A defesa
do governo (e de sua vitória eleitoral) feita pela “esquerda”, com base no
sucesso dos programas sociais “focados”, se revela a folha de parreira de sua
própria miséria política. Uma pesquisa realizada pela UnB-Ipea, com base no
cruzamento de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e das
declarações de Imposto de Renda de Pessoas Físicas, demonstrou que a
“desigualdade social” no Brasil, ao contrário do que foi amplamente alardeado,
não diminuiu nos últimos anos. Os 50% mais pobres da população detêm apenas 10%
da renda, e se forem considerados os 90% mais pobres, eles são detentores de
aproximadamente 40% da renda.
Isto significa que os 10% “mais ricos” da população detém
60% dos ingressos, e se avançarmos até o topo, verifica-se que 0,5% da
população detêm 20% da renda nacional. Contrariando toda a propaganda dos
governos petistas, aceita tanto pela “oposição de direita” como pela
“esquerda”, a desigualdade social se manteve estável durante a era Lula-Dilma,
apresentando ligeira tendência a aumentar. Sem falar em que basta olhar ao
redor para constatar as péssimas condições de vida da imensa maioria da
população brasileira, que nas últimas décadas não avançou, pelo contrário, em
matéria de saneamento básico, saúde ou educação, uma deterioração que foi o
detonante das jornadas de junho de 2013.
Mas, isto é decisivo, a virada tem lugar em condições de
crise política. Na véspera da posse do novo governo, a 1º de janeiro, mais de
um terço do gabinete (15 de 39 ministros) não tinha sido ainda nomeado, e era
disputado a pauladas pela “base aliada” (a disputa continua, em que pesem as
nomeações). A 31 de dezembro, “Dilma II” era ainda um governo sem governo, sem
gabinete. Dilma só conseguira tomar a providência básica de dar garantias ao
grande capital mediante as nomeações nas pastas de Fazenda e Planejamento (Levy
- Barbosa).
O anúncio da equipe econômica do novo governo recebeu as
boas vindas do grande capital. Joaquim Levy já foi apelidado de "mãos de
tesoura" pela sua febre ajustadora. Entre 2010 e 2014 foi presidente do Bradesco
Asset Management, gestora de ativos do Bradesco, que administra mais de 130
bilhões de dólares. Na Universidade de Chicago foi discípulo do time de Milton
Friedman, o velho chefão dos “Chicago Boys” e pai declarado do neoliberalismo
mundial. Como responsável político no Fundo Monetário Internacional (entre 1992
e 1999), Levy foi advogado de programas de austeridade nos mais diversos países.
Durante o governo FHC, Levy atuou como estrategista econômico, envolvido na
privatização de empresas públicas e na liberalização do sistema financeiro, que
facilitou a fuga 15 bilhões de dólares anuais. Levy é um membro eminente da
oligarquia financeira do Brasil.
Em outra pasta estratégica, Kátia Abreu, no ministério da
Agricultura, "miss moto serra", sustenta que o latifúndio não existe
no Brasil. Foi dirigente da Confederação Nacional de Agricultura e, desde
Tocantins, é agente do lobby da soja. Kátia foi a coordenadora da repressão
sangrenta dos últimos anos aos sem terra em luta, aos indígenas, ribeirinhos,
quilombolas, etc., e já anunciou que vem mais por ai. Para Indústria e Comércio
foi nomeado Armando Monteiro, que apoiou Aécio Neves, é ex presidente da CNI
(Confederação Nacional da Indústria). O índice Bovespa, exultante, saudou o
gabinete de Dilma com uma elevação de 5%; o novo governo recebeu a calorosa
aprovação doFinancial Times, do The Economist, de O Estado de S.
Paulo (“A dupla Levy-Barbosa na Fazenda-Planejamento mostra que Dilma
enfim cedeu às circunstancias”, comentou o jornal dos Mesquita) e até da Veja (“caiu
a ficha”, celebrou o semanário terrorista dos Civita).
Economia de Choque
Os gastos com juros da dívida pública já se aproximam de R$
300 bilhões. Com base nisso, depois de um déficit de 0,6% em 2014, Levy
prometeu terminar 2015 com um superávit fiscal primário de 1,2% do PIB (R$ 66
bilhões), tendo o ajuste fiscal como chave mestra, garantindo o pagamento da
dívida pública e da dívida externa (esta com compromissos de US$ 102 bilhões em
2015, 62% maiores que os de 2014), e também a “confiança” do capital externo,
com um forte ajuste social: recortar os planos sociais, atacar as
aposentadorias e pensões, eliminar direitos trabalhistas e rebaixar os salários
reais. O primeiro pacote de aumento de taxas, já aprovado, prevê elevar a
arrecadação em R$ 20,6 bilhões (7% do montante pago anualmente em juros) e
comporta aumento dos impostos ao consumo e ao crédito (o IOF às operações de crédito
dobrou, passando de 1,5% para 3% anual, mantendo-se o adicional de 0,38% por
operação). Os aumentos das taxas aos setores de combustíveis, cosméticos e
importados serão imediatamente repassados, também, ao consumidor, comportando
de imediato um aumento de 8-9% sobre a gasolina. O PIS e Cofins dos importados
passou de 9,25% para 11,75%.
Em menos de um mês, o ajuste fiscal já chegou quase a R$ 46
bilhões, entre cortes de gastos e aumento de impostos. O “realismo tarifário”
já anunciou um aumento de 30% no preço da energia (luz), elevando o IPCA
(inflação). No entanto, a política monetária promete ser anti-inflacionista
mediante o aumento da taxa de juros, compensando a situação complicada da
indústria (que perfaz hoje 15% do PIB, contra 23% em 1978) mediante a
desvalorização do real (para favorecer as exportações), uma política que os
trabalhadores pagarão com a elevação dos preços internos (carestia) e
aprofundamento da recessão econômica (desemprego).
A prioridade anunciada por Levy é a de cortar e retalhar
investimentos públicos, pensões, pagamentos por desemprego e salários do setor
público. Mas ele não inventou essa política, apenas lhe da uma continuidade
“radical”. No Legislativo, estão desde 2014 na agenda projetos de criação de
fundações públicas de direito privado (desmonte do setor público), de limitação
do investimento público com pessoal e de demissão por “insuficiência de
desempenho”. Sob o pretexto de "estabilizar a economia" (para os
grupos financeiros) Levy desestabiliza a economia de dezenas de milhões de
trabalhadores. Levy eventualmente mexeria nos impostos aos assalariados, as
taxas e alíquotas atualmente existentes. Nos últimos anos, o descompasso entre
a tabela do IR e a alta da inflação pôs salários cada vez menores na base da
arrecadação fiscal: muitos assalariados conquistaram reajustes salariais que
implicaram a queda de seu salário líquido, ao entrarem em faixa superior da
tabela. Dilma, no entanto, vetou a pífia correção da tabela votada no Congresso
(6,5% do imposto pago).
Está colocada, objetivamente, uma luta pela eliminação
do Imposto de Renda sobre os salários, até determinado montante. No Brasil, por
outro lado, mais da metade da arrecadação fiscal provém da tributação indireta,
chamada de tributação sobre o consumo. A maior alíquota do Imposto de Renda da
Pessoa Física (27,5%) é alta em relação aos rendimentos recebidos pelos
assalariados e pela classe média.
Na outra ponta, fatia significativa das rendas de sócios e
acionistas beneficiários de lucros e dividendos das empresas não se submete à
tabela de incidência do Imposto de Renda, pois a partir de 1996 esses ganhos
tornaram-se “rendimentos isentos e não tributáveis”. Também não se submetem à
tabela do Imposto de Renda os beneficiários de aplicações financeiras, para as
quais estão previstas diferentes alíquotas, sempre inferiores às aplicadas aos
assalariados, chegando-se em alguns casos até a isenção. Atualmente, a
tributação sobre a renda salarial representa cerca de um terço da arrecadação
(em 2000 respondia por 25% do total). A tributação sobre o patrimônio não
ultrapassa os 4%, o que é uma levedura para a concentração de riqueza. Os
fluxos de capital desregulado e livre de tributação aprofundam a regressividade
fiscal do Brasil. As pequenas alterações na composição da carga de tributos
realizadas por Lula-Dilma não foram nem de perto suficientes para uma reversão
desse quadro. Taxar progressivamente as grandes fortunas e os rendimentos
financeiros (excluindo da taxação os pequenos poupadores), eliminar as taxas
aos salários: eis um objetivo de luta para o conjunto dos trabalhadores.
Sob o pretexto de combate à corrupção, o seguro-desemprego,
a pensão por morte, e outros benefícios sociais básicos, terão sua concessão
tornada muito mais difícil. O novo ministro de Trabalho Manoel Dias atribuiu as
medidas à “segurança fiscal do governo”. O alto índice de rotatividade
existente na economia brasileira torna particularmente podre a ampliação do
prazo de carência do seguro-desemprego, de seis meses para 18 meses.
Trabalhadores demitidos com menos de um ano e meio de registro na carteira
deixarão de ter direito ao benefício, em nome da tal “segurança”. Essas medidas
permitirão ao governo economizar migalhas no orçamento, ao passo que
transformarão em verdadeiro inferno a vida cotidiana de centenas de milhares de
famílias que dependem desses benefícios para sobreviverem.
A desoneração da folha de pagamentos, praticada em especial
desde 2008, não reverteu a política de demissões, ao contrário, acentuou-a. Um
cruzamento de dados recente (Valor Econômico) demonstrou que R$ 5,5 bilhões
(23,1% de um montante impositivo de R$ 23,8 bilhões sobre a indústria) deixaram
de ser pagos por setores empresariais que demitiram mais do que contrataram
desde 2012. E Levy propõe, não só manter as desonerações, mas também aprofundar
as facilidades para demitir. A capacidade instalada da indústria está em seu
pior nível de utilização média desde 2009 (82%), sendo que as siderúrgicas, com
68,6% de uso da sua capacidade produtiva, são as que mais puxam o índice para
baixo. O “desenvolvido” estado de São Paulo (sob o comando tucano) foi o que
mais contribuiu (15%) com o aumento da miséria extrema em 2013-2014. Os
trabalhadores estão pagando pela crise.
O jurista (e juiz do trabalho) Jorge Luiz Souto Maior lembrou
que “em 2008, sob o pretexto da crise mundial, o Presidente da Vale do Rio Doce
(Vale S/A) encabeçou um movimento de reivindicação pública da flexibilização
das leis trabalhistas do país, como forma de combater os efeitos da crise
financeira. Sua manifestação, acompanhada do ato de demitir 1.300 empregados,
deflagrou um movimento nacional, claramente organizado, sem apego a reais
situações de crise, no qual várias grandes empresas começaram a anunciar
dispensas coletivas de trabalhadores, para fins de criarem um clima de pânico
e, em seguida, pressionar sindicatos a concordarem com a redução de direitos
trabalhistas, visando alcançar a eternamente pretendida diminuição do custo do
trabalho, que também serve às empresas no pleito, junto ao Estado, de concessão
de benefícios fiscais”.
Ele mesmo pôs o dedo na ferida ao constatar que “dada a
natureza de sua base política (o governo Dilma) tenta arrastar consigo parte
relevante da representação da classe trabalhadora. Lembre-se que recentemente
CUT, Força Sindical, UGT, CTB e Nova Central, antes mesmo de qualquer
reivindicação do setor econômico e em vez de se prepararem para resistir,
elaborando uma compreensão crítica de um modelo de sociedade que impõe,
historicamente, perdas e sacrifícios à classe trabalhadora e que favorece, cada
vez mais, à concentração da renda nas mãos de muito poucos, adiantaram-se e
levaram proposta de atuação estatal que permita legitimar a redução salarial
dos trabalhadores em até 30%, com redução proporcional da jornada de trabalho,
visando a preservação dos empregos no caso de crise econômica estrutural, que
vier a ser atestada pelo Ministério do Trabalho”. É através das
burocracias sindicais que se tenta impor as políticas contra a classe
operária e os assalariados em geral.
Esquerda e Trabalhadores
Como se encontra a esquerda nesta conjuntura? A “esquerda do
PT” se limita a reivindicar “mais radicalismo” (como se houvesse algum) de
Dilma-Lula, apoiando suas “medidas progressistas” sem criticar seu rumo burguês
pró-capital financeiro, e sem se postular como alternativa política real à
tendência dirigente do partido. Reivindica mais diálogo do governo com os
“movimentos sociais”, para contrabalançar o peso da direita burguesa no
governo, mas se recusa a tirar qualquer conclusão política da inclusão
governamental dessa direita (sob o pretexto de que o governo está em disputa
com os outros partidos, como se a escolha de Levy et caterva não
fosse opção do próprio PT, isto é, de sua direção). A “Articulação de Esquerda”
é a encarregada de dar visibilidade internacional a essa política, pois exerce
a responsabilidade dirigente do Fórum de São Paulo.
O PSOL, depois de obter 1,6 milhão de votos no 1º turno (o
dobro do obtido em 2010), e de fazer crescer sua bancada federal de três para
cinco deputados, rifou a votação obtida com o apoio a Dilma no 2º turno. Sua
ex-candidata presidencial declarou “que simpatiza com experimentos políticos
inovadores, como o Podemos (da Espanha)”. Ou seja, está na hora da
“inovação”, não da resistência e organização classista independente.
O PSTU, que fez uma votação quase marginal (menos de 100 mil
votos) enunciou, frente à crise, a ideia seguinte: “Somente a luta pode
garantir mudanças e evitar retrocessos”. Ou seja, que houve “avanços” e que se
deve seguir empurrando. Também os movimentos e, sobretudo, as ONG’s e fundações
que recebem fundos do Estado e das corporações, se limitam a criticar o governo
por temas pontuais. Quando a crise se torna pesada, denunciam “o golpismo” e
apoiam o governo: assim fizeram em junho de 2013 – chegando a denunciar as
posições de oposição classista como “golpistas”. O MTST, de grande atuação nos
últimos anos (e que está se articulando nacionalmente) esclareceu “que não
participa de qualquer frente de apoio ao governo. Estamos sim participando da
articulação junto com a CUT, PSOL, MST, UNE e outras organizações da esquerda
no sentido de construir uma frente de lutas com a plataforma de Reformas
Populares para o país”, que deverão ser realizadas, claro, pelo governo. O
abstencionismo político conclui numa política governista.
As eleições brasileiras mostram o fim de um ciclo e que a
burguesia não pode continuar governando vinha fazendo anteriormente. Isto
configura uma transição política e, por conseguinte, uma crise de conjunto. É preciso
agora que os trabalhadores, através de lutas parciais crescentes, desenvolvam
sua própria alternativa política. Uma nova etapa histórica se abriu no Brasil,
devido à crise econômica, à crise política e à nova etapa da luta de classes:
as greves, que entre 2003 e 2005 oscilaram em torno do número de 300 anuais
(compreendendo entre 15 e 20 mil horas paradas por ano) pularam em 2012 para
873 anuais, com quase 87 mil horas paradas (segundo medições do Dieese). Em
2014, em São Paulo, a greve de 120 dias das universidades estaduais paulistas,
com sistemáticas assembleias e mobilizações de rua, junto com outras greves do
funcionalismo público do país, foi um símbolo da nova etapa política que se
abriu.
No raiar do novo ano, os trabalhadores da Volkswagen do ABC
paulista entraram em greve por tempo indeterminado pela readmissão de 800
companheiros dispensados em 6 de janeiro. A empresa descumpriu acordo firmado
em 2012, que previa a estabilidade dos funcionários até 2016. Outros 244
trabalhadores foram demitidos na Mercedes Benz. A 12 de janeiro, os
metalúrgicos do ABC realizaram uma grande manifestação: mais de 20 mil pessoas
ocuparam as faixas da Rodovia Anchieta, com trabalhadores da Volks, Mercedes,
Karmann Ghia e vários outros setores das principais fábricas da região. Os
metalúrgicos da Volks mantiveram o movimento até fazer a patronal recuar nas
demissões (o sindicato admitiu, no entanto, um PDV, plano de demissão
voluntária). O caminho da vitória foi, no entanto, aberto: o da luta e da
mobilização independente.
O MPL (Movimento pelo Passe Livre), grande canal do
movimento juvenil das periferias urbanas, diante do novo aumento das tarifas de
ônibus (R$ 3,50, mais caro do que na Europa, com um serviço infinitamente
inferior) já convocou três manifestações em São Paulo e em outras capitais do
país. Como aconteceu em 2013, as manifestações começaram com poucos
participantes, mas já pularam para passeatas de 20 mil pessoas. E, também como
em 2013, a violenta repressão policial (cassetetes à vontade, detenções, bombas
de efeito moral, ação sistemática da P2) só fez crescer o número de
manifestantes. A juventude que luta também está abrindo seu caminho.
Perspectivas
Como abrir uma alternativa política independente, classista?
Este deveria ser o debate central da esquerda (mas não o é, por enquanto).
Entre 4 e 7 de junho próximos será realizado em Sumaré (SP) o 2º Congresso
Nacional da CSP-Conlutas, que experimentou um crescimento bastante importante
no último ano. Ele será seguido de uma reunião internacional do “sindicalismo
alternativo”, dando sequência a um evento realizado em março de 2013 em Paris.
O Congresso da CSP-Conlutas pode ser um marco de importância no
debate político da vanguarda operária e lutadora. Para isso é necessário, além
de normas democráticas, uma clara delimitação de posições políticas classistas.
A “acumulação de forças” sindicais ou sociais não tem futuro
sem um horizonte (alternativa) político, que deveria ser trabalhado
cotidianamente, através da agitação, propaganda e organização. Os “movimentos
sociais” realmente de luta não podem permanecer politicamente neutros ou
indefinidos. É necessário também, através de uma política de frente única,
meter uma cunha entre as organizações da classe operária (que se encontram
muito majoritariamente na CUT e na Força Sindical, ou seja, carecem de
independência política), e a burguesia, seu Estado e seu governo. Conclamá-las
a romper com sua política governista, através da unidade na ação e de um plano
de lutas unificado em defesa do salário e das conquistas sociais e
trabalhistas. E projetar essa luta através de uma alternativa política
independente, na perspectiva de um governo dos trabalhadores sem representantes
do capital e dos patrões.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
SER OU NÃO SER (CHARLIE)
Osvaldo Coggiola
Em 1998, Zinedine Zidane conduzia a seleção francesa de futebol à sua primeira conquista da Copa do Mundo, em Paris. O craque francês de origem argelina integrava um time histórico (também venceu a Eurocopa de 2000) com Didier Deschamps, Emmanuel Petit (nomes mais franceses, impossível), o ghanês Odenkey Addy Abbey (mais conhecido como Marcel Desailly), Lilian Thuram, também de origem africana subsaariana, Robert Pirès (que, se tivesse nascido no país que seus pais abandonaram a procura de trabalho, teria se chamado simplesmente Roberto Pires, e envergado a camisa cor de vinho também usada por Cristiano Ronaldo). A França e o mundo celebraram, na maior conquista esportiva de sua história, a vitória definitiva, no país do hexágono, de uma sociedade multiétnica e multicultural reconciliada consigo própria. O estraga-prazeres que ousou apontar que o time galo mais parecia um catálogo futebolístico do antigo império colonial francês recebeu, discretamente, não uma taça, mas uma garrafada de champanhe na cabeça.
Menos de sete anos depois, em 27 de outubro de 2005, houve a perseguição pela polícia, seguida de morte, dos jovens franceses descendentes de africanos Bouna Traoré e Zyed Benna, que fugiram de uma das habituais blitz policiais contra jovens não brancos das banlieues, entraram em um terreno fechado, pertencente à EDF (companhia de eletricidade), refugiando-se dentro de uma edificação de instalações elétricas, onde morreram eletrocutados (um terceiro, Muhittin Altun, sofreu queimaduras graves). Pouco depois, começaram os confrontos em Chêne-Pointu, entre grupos de jovens “periféricos” e a polícia. A revolta se espalhou rapidamente pela periferia de Paris e de outras cidades da França, instaurando-se o estado de emergência em 25 departamentos, a partir de 8 de novembro de 2005 até 4 de janeiro de 2006. Os distúrbios duraram dezenove noites consecutivas, até o dia 16 de novembro. Jovens indignados queimaram 8.970 carros e entraram em confronto com a polícia francesa; foram presos 2.888 jovens e houve mais um morto. Em 17 de novembro a polícia declarou que a situação tinha sido “normalizada”. Certo Chérif Kouachi, rapper amador, foi posto (com outros) na prisão.
Em 2011, os escritórios do semanário humorístico Charlie Hebdo, que tinha reproduzido as charges ofensivas sobre o profeta Maomé publicadas há pouco tempo no jornal dinamarquês Jyllands Posten (provocando manifestações de rua em repúdio em países árabes e/ou islâmicos) foram vítimas de um atentado a bomba, que provocou danos materiais, mas não vítimas. E, em novembro de 2013, a coluna sonora do filme francês “La Marche” dava a conhecer ao mundo um rap, “livremente” composto e cantado por vários conhecidos rappers franceses (Akhenaton, Disiz, Kool Shen e Nekfeu), em que o refrão solicitava, com alguma insistência, “um Auto da Fé contra esses cachorros de Charlie Hebdo”. Pouco tempo antes, Al Qaeda divulgara uma lista de condenados à morte (Fatwa), entre os que se encontrava o editor do semanário, Stéphane Charbonnier (ou “Charb”).
A 7 de janeiro de 2015, dois jovens irmãos franceses de origem árabe (e de declarada profissão de fé islâmica) invadiram a sede de Charlie Hebdo, e realizaram o pedido dos rappers, com meios mais modernos do que os outrora utilizados pelo frade Torquemada. Apresentados depois como profissionais altamente treinados em bases terroristas iemenitas e outros centros do Oriente Médio, inicialmente erraram o endereço do jornal, que lhes foi revelado por acaso por uma das jornalistas do semanário que, nesse momento, se apresentava ao trabalho. Graças a isso, entraram e mataram quase todos os presentes na redação (onze pessoas), numa ação realizada com armas “sofisticadas” (como as que circulam em qualquer favela do Rio) e com “grande profissionalismo”, segundo jornais e comentaristas. Tão grande, que um dos jornalistas presentes salvou-se ao esconder-se... em baixo de uma mesa. Uma jornalista presente teve a vida perdoada “por ser mulher” (foi aconselhada a ler o Corão pelos assaltantes/assassinos), mas outra (Elsa Cayat, psicanalista) tinha sido previamente massacrada a pesar de possuir evidentemente a mesma condição.
O corretor de provas de Charlie Hebdo, Mustapha Ourrad, não teve a vida perdoada em que pese sua óbvia e visível origem étnica semelhante à dos assassinos. Na saída, os irmãos Chérif e Saïd Kouachi proclamaram aos passantes sua filiação a Al Qaeda (sua filial iemenita) e arremataram (desnecessariamente, de qualquer ponto de vista, “militar” ou propagandístico) o já previamente ferido policial Ahmed Merabet, francês de óbvia e evidente origem árabe, demonstrando, se diz, se não seu aguçado faro político ou humanitário, pelo menos seu excelente “treino militar”, pois usaram um só disparo (contra um alvo imóvel, que pedia clemência no chão, situado a menos de um metro de distância...).
Pouco depois, outro “terrorista”, Amedy Coulibaly, acompanhado de sua namorada (ou ex) Hayat Boumeddiene, assassinou primeiro um agente policial na periferia parisiense (Montrouge) para depois invadir, supostamente “sincronizado” militarmente com os Kouachi, um comércio judeu (Hyper Casher), em uma ação de características claramente suicidas, durante a qual foi abandonado pela sua “profissional” cúmplice, que já estaria na Síria. Depois de conceder entrevistas telefônicas em que proclamou sua filiação ao ISIS (Estado Islâmico, EI) foi atacado por forças policiais, que o abateram, não sem lhe deixar tempo suficiente para assassinar quatro pessoas presentes, que não faziam obviamente parte de lista nenhuma de grupo nenhum. O ISIS (EI) reivindicou sua ação, tanto quanto saudou o massacre do Charlie Hebdo.
Os “sincronizados” militarmente irmãos Kouachi, ao contrário, não pretendiam se suicidar, nem ser mortos. Fugiram, demonstrando o sofisticado esquema militar que os apoiava, depois de roubar uma potente Renault Clio 1.0 de um aposentado, ao qual mostraram seus rostos (cobertos durante o massacre) e deixaram recuperar seu cachorro do banco traseiro ("le réflexe d'ouvrir la porte arrière et de dire : 'Je récupère mon chien.' J'ai donc récupéré mon chien"), depois de lhe informar, novamente, sua filiação a Al Qaeda de Iêmen (a concorrência dentro da franquia criada há três décadas pelo saudita Osama Bin Laden deve estar forte).
Com enorme profissionalismo e demonstração de recursos secretos em rede, assaltaram no caminho uma loja de mantimentos para ter do que comer, o que foi um dos elementos que denunciou sua localização. Previamente, os Kouachi tinham sido abandonados pelo treinadíssimo profissional terrorista francês internacional Mourad Hamyd, de 18 anos, que dirigiu o carro que os levou até a sede do jornal humorístico, e se entregou à polícia logo depois que as redes sociais vincularam seu nome com o massacre parisiense. Os Kouachi foram dados inicialmente como próximos à fronteira com a Bélgica, mas foram finalmente cercados em Dammartin-en-Goële, não longe de Paris, por uma parte (GIGN) dos 90 mil (!) policiais lançados em seu encalço, e foram mortos.
A indignação e o repúdio contra o massacre de Charlie Hebdo cobriram rapidamente a França e o mundo inteiro. Um desfile pela avenida Champs Elyséescom participação de todos os chefes de estado da Europa foi realizado domingo 11 de janeiro, com presença de mais de um milhão de pessoas (os jornais falaram de 3,7 milhões de manifestantes na França toda). Antes disso, manifestações enormes foram realizadas em todas as grandes cidades francesas, convocadas por todos os partidos políticos, centrais sindicais e movimentos. As entidades islâmicas (ou árabes) francesas manifestaram também seu repúdio ao massacre, enfatizando sua incompatibilidade com o “verdadeiro” Islã.
Je Suis Charlie invadiu jornais, sites e redes sociais de todas as cores políticas e ideológicas. Outra unanimidade foi definir o massacre como um “atentado à liberdade de expressão”, uma coisa à qual França est très attachée desde os tempos da Grande Revolução (1789), como lembrou Barack Obama e também seu enviado John Kerry, este em francês (merci, Johnny), e como sabem todos seus habitantes não brancos submetidos a cotidianos controles policiais (e expulsões do território) no país que inventou os direitos humanos, no melhor estilo de Ferguson (EUA). Sem falar dos que lembram o sequestro das bancas da edição de Charlie Hebdo quando este anunciou escrachadamente, em novembro de 1970, a morte do general de Gaulle (Bal Tragique à Colombey: un Mort).
A defesa da liberdade de expressão é um princípio, mas não abstrato e intemporal. Ela foi defendida na Revolução Francesa (e antes dela) contra o Antigo Regime e seu sistema de privilégios de classe. Na França de hoje (à diferença dos EUA) queimar a bandeira nacional em manifestação pública (contra a intervenção militar francesa em Mali, por exemplo) é um delito que dá cadeia. No mesmo país, essa liberdade deve ser defendida contra as sistemáticas tentativas do clero católico de introduzir no código penal o delito de “blasfêmia” (falando em Maomé, isso lembra alguma coisa?) para não falar do apoio dado pelo ministro “socialista” Manuel Valls àqueles que propõem equiparar o antissionismo (oposição ao Estado de Israel, isto é, ao genocídio palestino) ao antissemitismo, responsável pelo Holocausto judeu.
A “união nacional” xenófoba (europeia inclusive) tentada pelos governos, aproveitando o infame massacre múltiplo, começou a fracassar logo de cara: em Lyon, na manifestação popular reunida em frente à prefeitura, a multidão respondeu com um poderoso coro (“Charlie, Charlie”) à tentativa das autoridades de puxar o canto de La Marseillaise (os mais velhos talvez lembrassem os quebra-quebras promovidos pelos veteranos paraquedistas franceses quando o francês-judeuSerge Gainsbourg cantava em público sua versão rap do hino nacional francês,Aux Armes, etcetéra; eram só duas “liberdades de expressão” em confronto, foi dito então – uma armada, a outra não). A manifestação em Lyon era por Charlie Hebdo, não pela “França eterna”.
O por vezes lucrativo mercado das interpretações estapafúrdias e conspiracionistas foi, como não podia deixar de ser, acionado de imediato. Um “pesquisador” belga, que já montara une petite affaire baseada na afirmação de que os atentados às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001 foram obra da CIA e do Mossad (os árabes, como se sabe, seriam totalmente incapazes de uma empresa como essa, sobretudo contra os eficientíssimos serviços secretos ocidentais) já soltou a bomba (de crema) de que os irmãos Kouachi seriam agentes dos serviços secretos franceses (estes, certamente, já fizeram várias e boas, como a explosão de um barco do Greenpeace). Os herdeiros de Fouché e Talleyrand andariam, ao que parece, recrutando franco-árabes pobres e suicidas, se possível com passagem na prisão. Uma célebre pesquisadora argentina descobriu, desde Buenos Aires! (a distância dos acontecimentos às vezes ajuda) o braço longo da OTAN atrás dos dedos que puxaram os gatilhos na rua Nicolas Appert. A feira só acabou de abrir, outros produtos mais sofisticados logo virão.
Os produtos mais perigosos nessa seara, no entanto, são os vendidos na feira montada do outro lado da calçada. Os “grandes” jornais franceses (se é que algum deles merece ainda esse qualificativo) já lançaram a espécie de que a “sincronização” (provavelmente só imaginária, ou desejada) entre os Kouachi e Coulibaly anuncia (ou evidencia) uma junção/aliança entre Al Qaeda e Estado Islâmico, ou seja, uma nova etapa da “guerra terrorista internacional”, em que o inimigo estaria agora dotado de um exército regular (EI) e de um braço terrorista (Al Qaeda). Que obrigaria a um Patriotic Act internacional, uma contradição em seus termos.
A francesa Marine Le Pen, provável beneficiária eleitoral dos acontecimentos com sua xenófoba Frente Nacional, já lançou sua proposta de reintrodução da pena de morte (abolida, na França... em 1981), criticando o governo Hollande por não “dar nome aos bois” da ameaça antifrancesa (o islamismo radical), mas excluindo de seu alvo os “bons islâmicos franceses”. A senhora pretende mesmo vencer as eleições (seu papai, Jean-Marie Le Pen, fundador da FN, só chegou a um segundo turno presidencial) e demonstra que até os fascistas aprendem, quando necessário e conveniente: “Papai Jean-Marie” havia criticado, em meados dos anos 1990, a presença de negros e árabes na seleção francesa de futebol, responsável segundo ele pelo seu baixo desempenho (os “bleus” não classificaram para a Copa de 1994, sendo derrotados na eliminatória, em casa, por... Israel); pouco tempo depois, Zidane e seus amigos lhe fizeram enfiar suas palavras numa parte de seu corpo frequentemente retratada por Charlie Hebdo.
Do outro lado dos Alpes, onde as autoridades costumam ser mais papistas que o Papa (o que não é surpreendente, num país que abriga o Vaticano), uma circular das autoridades educacionais do Veneto (de 8 de janeiro!) recomendou que se exigisse aos pais de alunos de origem árabe que se pronunciassem condenando os atentados da França, e que a questão do “terrorismo islâmico” (sic) fosse abordada em sala de aula, pondo em guarda os alunos e suas famílias contra uma "cultura che predica l'odio contro la nostra cultura”. Ou seja, que se trata de cultura mesmo, não de armas ou de atentados.
A temida frente Al-Qaeda/EI, destinada a cobrir com uma onda de terror o planeta inteiro, se acontecer, teria raízes não em conspirações urdidas em cantos escuros de mesquitas orientais, mas em negócios urdidos em corredores com os paladinos da “guerra contra o terror”. EI é, ao que parece, uma cisão de Al-Qaeda, depois que esta se mostrou cada vez menos operacional. Um oficial arrependido (há vários) da inteligência norte-americana denunciou que o “monstro” EI foi parido pelos serviços (mais ou menos) secretos ianques, diretamente ou através de seus aliados da Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos. Os Estados Unidos se recusaram a ajudar o governo da Síria a combater grupos como Al-Qaeda e o então chamado ISIS (Exército Islâmico do Iraque e da Síria, que mudou de nome para “Estado Islâmico”). Além disso, segundo revelações feitas pelo site Wikileaks, o governo norte-americano armou grupos, como o ISIS e outros, para derrubar o governo sírio.
Quase três mil documentos sobre essa questão foram vazados pelo site de Julian Assange em agosto de 2014. Que também revelaram que isso aconteceu depois de Bashar al-Assad, o repressor ditador-presidente sírio, mostrar empenho “no combate ao terrorismo e aos grupos radicais islâmicos no Oriente Médio”, ou seja, declarar sua intenção de colaborar com os EUA na região. Para enviar armas para o ISIS, o governo Obama usou bases clandestinas na Jordânia e na Turquia. Aliados dos EUA na região, como Arábia Saudita e Catar, também forneceram ajuda financeira e militar. Agora, o demônio parece ter-lhes fugido do controle, como já acontecera com Al-Qaeda.
Buscar as origens de toda essa porcaria, e dessa crise da política externa doimperialismo norte-americano, no “islamismo político” (Irmandade Muçulmana) fundado por Hassan por Al-Banna no Egito dos anos 1920 é um belo exercício de erudição inútil. O islamismo (institucional ou não) foi um fator de moderação, com políticas assistencialistas e prédica religiosa, e até de combate ao nacionalismo e ao anti-imperialismo árabe (ou iraniano) nas décadas sucessivas, quando o movimento nacional árabe se aproximou mais da URSS, do maoismo e até do marxismo revolucionário. A “guerra fria” aguçou essas características. A passagem para o “islamismo com metralhadora” foi auspiciada pelos EUA em resposta a, e graças à, invasão soviética do Afeganistão (vinculada ao desenvolvimento da revolução popular contra o Xã Reza Pahlavi e seu governo de charmosos assassinos no Irã, que costumavam enfeitar as capas das Hola! e Caras daquelas décadas infames).
Osama Bin Laden (entre outros) contou com importantes meios financeiros e militares fornecidos pelos EUA (além dos próprios, que já eram importantes, como filho de uma das mais ricas famílias sauditas) para provocar o desejado “Vietnã da URSS” no Afeganistão, cinco anos depois do Vietnã americano. Tornou-se carta fora do baralho (americano) com a retirada soviética do Afeganistão e o consecutivo início da contagem regressiva da URSS. Mas era uma carta armada até os dentes e com contas bancárias de muitos dígitos espalhadas pelo mundo. O feitiço virou-se contra o feiticeiro e o restante, do atentado de Nairobi até o ataque aéreo ao World Trade Center em 2001, é história conhecida. O declínio político e morte de Osama num vilarejo perdido do Paquistão, sem custódia e com 300 euros no bolso, não deram, porém, fim à história do pântano da política imperialista (norte-americana e europeia) no Oriente Médio e na Ásia Central. Os EUA se retiraram do Afeganistão e do Iraque invadidos, deixando atrás de si o caos político mais completo, devido a pressões internas e internacionais (e à sua própria crise econômica galopante), que os obrigaram também a retirar da Casa Branca o clã Bush e seus alucinados planejadores da “guerra infinita” (Donald Rumsfeld, Blackwater and Co.).
E tiveram de voltar logo depois, agora com “drones”, “tropas preventivas” e, sobretudo, agentes interpostos (enviar tropas próprias seria extremamente impopular, nos EUA), que deram nova vigência à Al-Qaeda e seus filhotes (desejados ou não). Estes já aprenderam (Osama Bin Laden sacrificou sua vida no aprendizado) que é possível ter seu próprio jogo nesse xadrez de morte. E começaram a recrutar na Europa, na Rússia, na China e nos próprios EUA, para ações onde for preciso, ou simplesmente onde for possível. Mas só se recruta onde há bases para esse recrutamento; França é um território privilegiado para isso. Como afirmou um panfleto (de L’Insurgé) lançado em Paris logo depois dos assassinatos no Charlie Hebdo: “Comment ne pas comprendre que ces groupes, jouant sur la xénophobie et la misère dont sont victimes, en Europe, nombre d’enfants d’immigrés, puissent à leur tour embrigader quelques dizaines de paumés? Et en usant pour cela de la religion comme d’une drogue?”.
8,4% da população francesa é composta por imigrantes; seus filhos, por sua vez, perfazem 11% da mesma população. Ao todo, quase 20% da população (e um percentual ainda maior se contados os sans papier, os imigrantes ilegais) sendo os árabes (ou de origem árabe) o contingente mais numeroso. A maioria dos imigrantes chegou nas décadas situadas entre 1950 e 1970, quando as portas da França (e de outros países europeus) se abriram, em meio ao boom econômico, para trabalhadores em setores de mão de obra escassa, ou em serviços (limpeza, colheitas, serviços domésticos) que os franceses se recusavam doravante, por variados motivos (salariais, em primeiro lugar) a executar.
Os primeiros (os imigrantes) carecem de direitos políticos; os segundos (seus filhos e netos) os possuem, mas são objeto de discriminações cotidianas. A integração dos “OS” – peões de chão de fábrica – imigrantes na vida sindical, primeiro passo para sua integração na luta de classes e na vida social do país, foi limitada. As políticas das direções “socialistas” e “comunistas”, que só os aceitaram como enfeite, e das burocracias sindicais, foram as principais responsáveis por isso. Empilhados em alojamentos precários (os foyers Sonacotra), vítimas de mil entraves burocráticos para reunir suas famílias no novo lar, inclusive depois de décadas de trabalho. Discriminados nas escolas, discriminados até nos bares, nos lugares de lazer, confinados em guetos. Os importadores de mão de obra barata, que acelerou a acumulação de capital e os lucros do capitalismo francês nos “trinta anos gloriosos”, “esqueceram” (propositalmente, claro) que não estavam importando apenas trabalho, mas pessoas, com cultura, desejos e aspirações próprias. Atender essas necessidades não dava lucro, apenas gastos.
Pais árabes sem religião (ou não praticantes) passaram não raro a ter filhos islâmicos praticantes. O responsável da mesquita frequentada pelos irmãos Kouachi se lembrou deles (em entrevista à TV) como discretos e calados, usando roupas “ocidentais”, mas que se exaltaram (contra) quando na mesquita foi feito um chamado a participar da vida política do país, nas eleições francesas. Estrangeiros no país em que nasceram e se criaram. Essa informação vale mais que todas as descobertas de “pesquisadores” sensacionalistas à cata de negócios editoriais.
Fracasso da badalada “sociedade multicultural”, da “tolerância entre culturas”? Mas a própria noção de “tolerância” não implica que haja “tolerantes” e “tolerados”, isto é, opressores e oprimidos? Quem é que quer ser apenas “tolerado” durante toda uma vida? Alguns setores da vida do país se abriram para os árabe-franceses, nos esportes e em especial na cultura; alguns franceses passaram a apreciar a música árabe. O rap franco-árabe conquistou algum lugar nas paradas. Mas foi pouco, foi lento, e a máquina trituradora da sociedade de classes continuou a funcionar com muito maior rapidez e eficiência.
A crise econômica e o “desemprego estrutural”, a partir de meados da década de 1970, completaram a catástrofe. “Les Français d’abord” não foi só um slogan de partidos de extrema-direita (depois, apenas de direita), mas também uma frase que se ouvia com demasiada frequência nas filas das agências oficiais de emprego. E a esmola oferecida aos desempregados crônicos passou a ser chamada, quando concedida a trabalhadores estrangeiros, de aproveitamento parasita por parte destes dos impostos pagos pelos “honestos franceses”. A extrema direita xenófoba (no início, também explicitamente antissemita) pulou gradativamente de menos de 1% para mais de 20% dos votos, obtidos inclusive entre os setores mais pobres dos antigos eleitorados socialista e comunista.
Fracasso do sistema educacional francês em integrar comunidades de origem alógena aos valores e tradições republicanas da França, inclusive quando já se encontram na sua terceira geração de descendentes de estrangeiros (principalmente árabes) nascidos no país? Valores que integram, por exemplo, a invasão napoleônica do Egito, em 1798 (as peças arqueológicas e obras de arte roubadas na empreitada enfeitam até hoje o Museu do Louvre e o Museu Britânico, em que pesem as reclamações dos governos egípcios). A colonização da África do Norte pelos franceses, a partir de 1830. As aventuras coloniais africanas de Napoleão III. A corrida às colônias de franceses (e outros países europeus) na África e na Ásia, na passagem do século XIX para o século XX.
E, no século XX, os acordos Sykes-Picot que dividiram Oriente Médio ao sabor dos interesses das potências colonialistas europeias. A repressão sangrenta da revolta encabeçada por Abdelkrim (Abd el-Krim El Khattabi) no Marrocos (Riff) franco-espanhol, na década de 1920, realizada pelo marechal Pétain, o mesmo que entregou depois a França aos nazistas. O uso das “tropas coloniais” para as tarefas mais sujas, podres e perigosas, como a ocupação do Rühr alemão (1923), ou na Segunda Guerra Mundial. A “guerra suja” (foi aí que o termo foi cunhado) de França contra a luta pela independência da Argélia, modelo das ditaduras latino-americanas. O bombardeio massacrador de Sétif e Guelma, com 50 mil mortos, ordenado pelo governo republicano e “socialista” de Guy Mollet. O massacre de manifestantes pela independência argelina no metro Charonne, em 1962, com dezenas de mortos e feridos, ordenado pelo prefeito parisiense Maurice Papon (depois julgado por crimes de guerra e colaboracionismo com os nazistas). E, como dizem os franceses, j’en passe (os massacres no Chade e em Ruanda, a intervenção na Líbia, a atual intervenção “anti-islâmica” no Mali)... Como “integrar” as vítimas às tradições e valores de seus açougues?
Por que estava “Charb” na lista de alvos de Al-Qaeda, ao lado de Shalman Rushdie e outros? Existe uma explicação mais óbvia do que a óbvia: porque essa lista existe. Se não existisse, Al-Qaeda, grupo (ou melhor, franquia) terrorista, perderia uma de suas razões de ser. O terrorismo existe em razão de seu alvo, real ou imaginário, justificado ou inventado.
E porque Charlie Hebdo? Vamos deixar de lado a explicação sem pé nem cabeça de que se trata de uma publicação de extrema esquerda, portanto ateia, marxista-anarquista ou coisa que o valha. As críticas de Charlie Hebdo à corrupção estatal e ao capitalismo predador a situam (sem grande destaque) dentro de uma constelação de publicações francesas semelhantes (sendo a mais célebre Le Canard Enchaîné). Charlie Hebdo não tem vínculos políticos explícitos, a não ser a colaboração de seu mais célebre cartunista, mundialmente reconhecido e assassinado a 7 de janeiro, Georges Wolinski, e do próprio “Charb”, com as publicações do Partido Comunista (PCF).
O específico de Charlie Hebdo não é isso, mas seu humor escrachado, multidirecional e sem limites (morais, políticos, ou de qualquer tipo) de qualquer espécie. De valor desigual, e convenhamos em que produzir semanalmente cinquenta páginas de humor gráfico ou escrito escrachado em extremo não é tarefa para qualquer um. Perto de Charlie Hebdo, o CQC (brasileiro ou argentino) ou o extinto Cassetta & Planeta de Bussunda e seus amigos parecem programas infantis com roteiro redigido por freiras carmelitas. Algumas de suas capas (sobre a morte de de Gaulle; sobre a exposição do cadáver de Paulo VI durante uma semana no Vaticano, ilustrada por um queijo camembert em decomposição; sobre a fracassada e carbonizada expedição americana para resgatar os reféns de Teerã – Carter offre un méchoui aux iraniens – e outras) se tornaram históricas.
Sustentou-se que se trata de uma tradição especificamente francesa, do “país da liberdade”, que remonta à própria Grande Revolução do século XVIII. Uma verdade parcial (ou, como dizia Sarmiento, a pior das mentiras): o humor bombástico dos panfletistas e desenhistas revolucionários tinha, naquele tempo, alvos bem específicos (a família real, a nobreza, o sistema autocrático, etc.). Charlie Hebdotem (tinha?) todos os alvos, franceses, europeus, internacionais, de qualquer cor política. Ninguém estava a salvo. Aventuraria dizer que Charlie Hebdo era (junto com seus antecedentes, Hara-Kiri e publicações assemelhadas) o último e impenitente sobrevivente de Maio 1968, do escrache total com vistas à “revolução total”. Por ser francês (e muito) – foi imitado por outras publicações europeias, que não conseguiram chegar nem perto – padeceu também de taras e preconceitos tipicamente franceses: a capa com Maomé de quatro, com uma estrela no lugar do ânus (Une étoile est née) era bem menos “irreverente” do que totalmente carente de graça ou comicidade, o tipo de baixaria que nem sequer faz sorrir. Com certeza, o editor David Brook, no New York Times, fez bem em lembrar que, nos Estados Unidos, a publicação de Charlie Hebdo não seria permitida...
E com certeza, "Cabu", "Charb", "Honoré", "Tignous", Wolinski, "Oncle Bernard", Elsa Cayat, Mustapha Ourrad, Michel Renaud, Frédéric Boisseau, Franck Brinsolaro, nem suspeitavam que seriam um dia celebrados como símbolos da “liberdade francesa” (um conceito que os fazia ou faria rir às gargalhadas) por governos de corruptos e açougueiros, por políticos de direita, e por ícones do conformismo artístico e cultural. Os que foram às ruas foram por eles, os iconoclastas sem limites assassinados sob as ordens de fascistas de periferia, não por Hollande, Sarkozy ou Le Pen (ou por Merkel, Rajoy ou Renzi). Mas, por enquanto, não têm alternativa política a eles, e tiveram de aceitá-los, bon gré, mal gré, à cabeça das passeatas ou nos palanques.
Mas são muitos os que sabem que, por trás desse “fantasma da liberdade” (diante do qual os “bons islâmicos” da Europa deveriam se ajoelhar e aprender, como se fossem crianças ignorantes, mas perigosas) se desenha um Estado policial “antiterrorista” e, no bojo deste, um fascismo new age e um aprofundamento das políticas e dos massacres colonialistas e imperialistas, em primeiro lugar no Oriente Médio, na Ásia Central e na África. O terrorismo indiscriminado que usa Maomé como pretexto para defender os interesses de feudo-burguesias periféricas, e também de um clero reacionário e parasita, existe porque as massas árabes não têm uma alternativa política independente. O proletariado e as massas exploradas na Europa podem lhes pavimentar o caminho nesse sentido lutando contra o capitalismo e o imperialismo em seu próprio país e continente. Por uma sociedade em que as culturas de todo o mundo possam se desenvolver livremente como expressões de um único gênero humano, sem necessidade de gurus “multiculturais” nem de policiais “civilizados” autorizados a impor a “civilização” com bombas, massacres e saques impostos aos “incivilizados”. A religião (todas), nesse processo, trouvera son compte.
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
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