Jorge
Altamira, da direção nacional do Partido Obrero da Argentina e da
Coordenação para a Refundação da Quarta Internacional (CRQI)
Embora
tenha surpreendido, inclusive a maioria dos observadores, os levantes populares
no Irã, nesta última semana, estavam potencialmente previstos na crise do regime
político que tem se desenvolvido em quase duas décadas. A orientação nacionalista
do regime dos aiatolás, e seus choques contra o imperialismo, ocasionaram numa
política de autarquia econômica que esgotou rapidamente suas possibilidades e
provocou um freio no desenvolvimento das forças produtivas.
O desemprego e a inflação assumiram níveis cada vez maior, e
inclusive com consequências catastróficas para a massa mais pobre da população. A saída
do “populismo” e a liberalização econômica se tornaram a pedra de toque entre
a maior parte da burguesia e o aparelho estatal controlado pelas camarilhas clericais
e o aparelho militar (a guarda revolucionária). Esta crise deu lugar a levantes
populares em 2009, e a mudanças políticas sucessivas, que outorgaram a vitória
formal ao grupo ‘renovador’ ou aos ‘liberais’. Em 2009, a agenda dos levantes foi
ocupada por uma agenda política com forte componente laico - incompatível, em
última instância, com o regime teocrático. No Irã, um conselho de aiatolás
designa a maioria dos cargos parlamentares, e dirige as forças armadas e de
segurança, ou seja, que o país funciona como uma autocracia com enfeites
constitucionais, e paga, em consequência, quase todo o custo da manutenção da
casta parasitária. A vitória eleitoral dos liberais em duas ocasiões não deu lugar, no entanto, a nenhuma modificação
do regime - tampouco com o atual presidente, Rouhani, reeleito em maio passado
com 57% dos votos.
A crise
internacional
A saída
“liberal” à inflação e à estagnação “populista” implicou, como no mundo todo,
uma política de “ajuste” e de “realismo econômico” (tarifaços e pagamento de
subsídios ao consumo), o que agravou a miséria popular. A expectativa de obter
financiamento e investimentos internacionais ficou frustrada, apesar de que
esta foi a grande contrapartida que prometeram os EUA, a UE, Rússia e China, a
renúncia, por parte do Irã, a prosseguir com seu desenvolvimento nuclear. O Irã
necessita US$ 1 bilhão para manter seu nível de produção atual. As sanções econômicas
contra o Irã foram bastante escamoteadas; Trump tem adotado novas sanções, em
violação ao acordo, e inclusive ameaçando com penalidades à petroleira francesa.
Satisfeitos pelos convênios assinados com o Irã, a Arábia Saudita e os Emirados
do Golfo, por outro lado, tem desatado um ataque violento contra o Qatar, pelos
investimentos que este Emirado compartilha com o Irã na jazida de gás mais
importante do planeta, e estão desenvolvendo um plano de guerra em acordo com o
Israel e os EUA, para destruir a influência do Irã no Iêmen e no Líbano. O novo
hierarca saudita chegou a sequestrar ao primeiro ministro libanês para impor um
despejo do Hezbollah do governo do Líbano. Trump não tem retribuído ao Irã o
papel que tem desempenhado na derrota do Estado Islâmico no Iraque, e agora o
desarmamento parcial das milícias xiitas iraquianos; tampouco a “pacificação”
da Síria, que permitiu tirar do atoleiro a intervenção militar norte-americana.
Os acontecimentos iranianos levantaram não só uma crise política
extraordinária, mas também uma crise política internacional.
A faísca
que ascendeu o rastilho de pólvora foi o aumento das tarifas dos serviços
públicos e do preço dos ovos, e a negligência perante os desastres sociais
produzidos pelos vários terremotos. Subiu a tarifa da gasolina, que se converterá
em maior carestia. Também está produzindo demissões por fechamentos de
empresas, e bloqueios de estradas e ocupações de empresas. Faliram, além disso,
vários bancos e “entidades” financeiras não reguladas, e que se encontram em
poder de setores do próprio aparelho estatal. Houve uma confiscação de depósitos
e poupanças. Anuncia-se no plano econômico um começo de colapso com consequências
que não se podem prever. O movimento de protesto não reconhece uma liderança
operária, mas ainda não se pronunciaram os trabalhadores petroleiros.
Reivindicações
A
explosão começou em Mashhad, o feudo do opositor ‘populista” de Rouhani, que incentivou
os primeiros passos da revolta, mas rapidamente perdeu o controle desta. O fogo
se alastrou no resto do país. Esta rebelião se diferencia dos levantes de 2009,
em aspectos importantes: sua base é a população mais pobre, não a classe média;
as reivindicações econômicas ocupam um lugar maior; constituem um ataque ao
regime, incluindo até o governo "liberal" da “reforma permanente”; carece de
uma direção política estabelecida com anterioridade. Rouhani pretendeu, num
começo, canalizar o movimento com promessas de “correções”. A cúpula clerical
ordenou uma repressão limitada às forças de segurança. Os “reformistas” e os “conservadores”
ou “populistas” fecharam fileiras, com a consciência de que qualquer ruptura,
nesta etapa, daria um sinal à revolução. As massas em rebelião têm passado da afronta
econômica à reivindicação política, com palavras de ordem contra o regime no
seu conjunto. Responsabilizam ao conselho de aiatolás e seu aparelho militar
por monopolizar a riqueza nacional às custas do povo. Deste modo, o setor “confessional”
da população se tornou no vetor da luta pela república - não islâmica,
portanto, laica. Isto está ocorrendo no país mais politizado do Oriente Médio,
com uma importante tradição revolucionária (1953, contra o golpe da CIA; 1979,
a revolução que derrotou a monarquia).
Dada a experiência
recolhida desse esmagamento das revoluções árabes de 2011, alguns olham nisso
tudo a mão do imperialismo. Após o apoio de Trump, Netannyahu e o saudita Bin
Salam, consideram-na um complô longamente preparado. Mas, como o explica um
especialista para nada suspeito de simpatias pelo regime, “os iranianos tem
apoiado a intervenção do seu país na Síria e no Iraque. Após a tomada de Mosul,
o Estado Islâmico havia ameaçado em invadir Mashhad”, o berço da rebelião em
curso. As palavras de ordem contra o aparelho militar obedecem à corrupção, não
a uma oposição à política internacional (Le Monde, 3.1.18). O "apoio" dos Trump
e seus sequazes reforçam o sentimento de independência nacional, e constituem
essencialmente uma provocação política contra a rebelião, inclusive contra os governos
da EU, que tem se limitado a exigir ao governo iraniano “a defesa dos direitos
humanos”.
A
questão da direção política desta rebelião será resolvida com o desenvolvimento
dos acontecimentos. O prognóstico a respeito só pode ser condicional; o apoio
em forma incondicional das ações pelas reivindicações populares e o repúdio e
rejeição da repressão, não devem se confundir com o apoio a uma direção
política que não conhecemos. O regime deverá operar uma virada de política econômica,
para não cair num impasse mortal. A possibilidade, no entanto, de que o
aparelho clerical procure utilizar a repressão para liquidar diferenças com o “reformismo”,
ou seja, produzir um golpe de estado. Haverá um novo desenvolvimento da crise
internacional, dado que os acontecimentos iranianos são atribuídos à ruptura,
por parte de Trump, do bloco que negociou o acordo político-econômico-nuclear
com o atual governo iraniano.
Fica
claro que se abre, no Irã e em todo Oriente Médio, uma nova etapa política, que
haverá de remanejar todas as questões que não puderam ser resolvidas pelo
esmagamento das revoluções árabes.