3. O processo nacionalista burguês das últimas duas décadas
caracteriza-se, além disso, por uma proposta de desenvolvimento
capitalista fortemente parasitário. Nos meandros da crise mundial, a
América Latina assistiu a dois ciclos de grandes aumentos dos preços
internacionais das matérias-primas. Foram descritos como o fim da
tendência à deterioração dos resultados negativos do intercambio
comercial. Os superávits comerciais causados por estes aumentos deram
origem, por sua vez, a um novo ciclo do endividamento internacional
(público e privado), promovido pelo apoio oferecido pelo crescimento das
reservas internacionais. O pagamento da dívida externa herdada foi
feito com a emissão de dívida interna e o esvaziamento dessas reservas. A
abundância de liquidez foi aplicada à expansão sem precedentes do
crédito ao consumo, a taxas de juros excepcionais ou subsidiadas pelo
Estado.
Desenvolveu-se, dessa forma, um populismo “bancário”, que engordou os
benefícios financeiros em detrimento de uma hipoteca crescente das
famílias. Foi uma versão latino-americana dos créditos "subprime", que
detonaram a crise nos Estados Unidos. Os chamados planos sociais, em
muitos casos financiados pelo Banco Mundial, embelezados pelo 'conto' do
fomento do consumo, esconderam a falta de criação de emprego e a quase
nenhuma industrialização, e agora estão ameaçados por enormes déficits
fiscais (que eles obedecem, é claro, a outras razões, em primeiro lugar o
pagamento de juros usurários da dívida pública e o financiamento
público subsidiado para os capitalistas). O mito da criação de uma
classe média se derrete agora à vista de todos como a neve às vésperas
do verão.
Longe de ter se esquivado da bancarrota capitalista mundial, a gestão
política nacionalista (às vezes chamada de progressista) operou para
converter a nações da América Latina em um despejo de lixo do capital
financeiro internacional - que encontrou nessas gestões o mercado para
seus excedentes de produção, rentabilidade dos investimentos financeiros
e a recuperação de seus créditos incobráveis. As empreiteiras de obras
públicas 'nacionais' tiveram uma expansão sem precedentes no Brasil
(claro!), na América Central, Venezuela, Cuba, Peru e Argentina,
acompanhadas de um elevado endividamento internacional e um festival de
superfaturamentos.
O colapso das experiências nacionalistas vem acompanhado pelas
falências das empresas estatais e privadas (da Odebrecht e o complexo em
volta da Petrobras até as Telecom ou a siderurgia no Brasil, ou a YPF e
sistema energético na Argentina e PDVSA; déficits fiscais
extraordinários e, finalmente, o default de fato da dívida externa, que só
é honrada com novas dívidas de taxas onerosas e a venda de ativos
industriais).
4. As experiências nacionalistas das duas décadas recentes estão
muito aquém das realizações das que a precederam – como o primeiro
peronismo, o varguismo, o nacionalismo boliviano desde a guerra do Chaco
ou o velazquismo equatoriano. Rafael Correa segue empenhado ainda em
conciliar a proposta nacionalista com a dolarização e a autonomia
econômica com o rentismo petroleiro. Para isso contraiu, da mesma
maneira que a Venezuela, uma dívida impagável com a República Chinesa,
contra a garantia da entrega do petróleo. Ao “eterno retorno” do
nacionalismo aplica-se aquela frase de Marx em relação à repetição da História. O sujeito histórico do nacionalismo – a burguesia nacional -,
que, além disso, se faz por movimentos pequeno burgueses, militares ou
inclusive de “trabalhadores” (PT), é mais impotente que nunca para
encarar uma iniciativa nacional autônoma, no marco da decadência do
capitalismo mundial. As segundas versões não foram, então, melhores; o
nacionalismo é uma proposta historicamente em retrocesso, inclusive
quando assume posições nacionais progressivas de caráter parcial. O
chavismo destacou-se como uma tentativa de ir mais longe que os que lhes
precederam, os desacreditados da Ação Democrática, e a distribuição corrupta do
aparato do estado pelo Pacto do Ponto Fixo (acordo político firmado em 31 de outubro de 1958, entre os três grandes partidos venezuelanos - a Ação Democrática (AD) e a União Republicana Democrática (URD), de centro-esquerda, e o social-cristão Comitê de Organização Eleitoral Independente (Copei) (cristianismo de direita) -, para assegurar estabilidade ao país, após a derrocada da ditadura de Marcos Perez Gimenez alguns meses antes das eleições de dezembro do mesmo ano. Seus efeitos se fizeram sentir até o início dos anos 90).
O socialismo do século XXI
5. O esforço do chavismo por fundamentar sua experiência em termos
bolivarianos (unidade continental) ficou sem destino - até mesmo as
iniciativas do gasoduto do Sul ou do banco do sul. Estas propostas não
foram levadas em conta quando se aprovou a entrada da Venezuela no
MERCOSUL, ou quando se criou o Unasul (um veículo de exportação das
empreiteiras brasileiras e da Embraer), ou menos ainda na ocasião da
criação do Banco de Desenvolvimento proposto pela China. A questão
bolivariana foi reduzida a uma invocação nacionalista romântica, com a
finalidade reacionária de realçar as forças armadas. Foi usada como um
instrumento de propaganda política contra o colombiano Uribe, que foi
designado como um descendente direto do general Santander - que dividiu a
então Grã - Colômbia.
Por outro lado, ignora-se o conteúdo contra-revolucionário que contém
o rótulo do socialismo do século XXI - inventado, além disso, não por
Chavez, mas por um acadêmico diletante, Heinz Dietrich, que já faz tempo
deu marcha à ré e passou a alardear a conciliação com os esquálidos.
Dietrich não foi o único conselheiro que conseguiu a atenção superficial
de Chávez; outros lhe aconselharam a promover a criação da V
Internacional, que não teve a menor importância. A etiqueta do século
XXI é uma réplica de negativa, não já para a Revolução Bolchevique de
1917, mas à Revolução Cubana, o estágio mais elevado que atingiu a
revolução latino-americana. A Revolução Cubana (século XX) começou com
uma abordagem democrática e chegou à expropriação massiva do capital
estrangeiro e nacional. Os simpatizantes mais politizados do chavismo
ignoram o significado estratégico do recuo programático e estratégico
que está contido nesta preferência pelo século XXI.
A atualidade da revolução socialista emana do ingresso do capitalismo
na época do seu declínio ou decadência histórica, da época em que o
desenvolvimento das forças produtivas assume um caráter cada vez mais
parasitário e destrutivo, quando a contradição delas com as relações de
produção e as estruturas estatais e nacionais torna-se mais violenta. O
rótulo de Século XXI, que não é usado somente para banalização ao
socialismo, mas é invocado para troco de nada, não passa de recurso
publicitário ou de marketing político.
O ponto de partida desta decolagem política que, iniciou de fato, o
movimento Sandinista, que, ao contrário da Revolução Cubana, atolou a
revolução vitoriosa de papel mais importante das massas na História da
América Latina (uma guerra civil de massas que deixou 50 mil mortos em
poucos meses), através de uma política de conciliação com a burguesia
democrática... Fê-lo em total acordo com a antiga burocracia da URSS e o
castrismo, que por essa época já tinha abandonado o foquismo e buscava
essa mesma conciliação com as burguesias latino-americanas e os EUA.
Anos mais tarde, o movimento Sandinista voltou ao governo como um
gendarme da ordem capitalista, comandado por Daniel Ortega. O socialismo
do século XXI postula uma mudança social nos marcos do capitalismo, sem
revolução, ou seja, sem a destruição do aparato de estado existente e
sem governo de trabalhadores (ditadura do proletariado). A roupagem
militar e o apoio popular não convertem ao chavismo em socialismo de
qualquer tipo, mas em um 'replay' da demagogia socialista que tem
caracterizado todos os movimentos nacionalistas no mundo. Isso tem sido
assim desde o declínio da Revolução Francesa e, em particular, de
Napoleón III e Bismarck - os 'populistas' por excelência (caracterizados
por promover a maior acumulação de capital no século XIX).
Nacionalizações
6. Aonde mais se observa o declínio do nacionalismo de conteúdo
burguês é no campo das nacionalizações. Em geral, a nacionalização
parcial do capital estrangeiro obedece ao propósito de promover o
desenvolvimento das forças produtivas que a burguesia nacional é incapaz
de fazer por causa da pressão do capital financeiro internacional.
Neste sentido, as nacionalizações procuram melhorar o campo de
exploração social da burguesia nacional e oferecer uma base mais sólida
para o Estado capitalista. No momento oportuno, estas nacionalizações
podem reverter-se em privatizações em benefício dessa mesma burguesia
nativa na medida em que está se desenvolvendo em forma suficiente para
isso. As nacionalizações mais avançadas do nacionalismo latino-americano
foram a do petróleo mexicano por Lázaro Cárdenas; a da United Fruit, na
Guatemala; a mineração na Revolução Boliviana de 1952 e a do petróleo
em 1970; e as do petróleo e as fazendas da Costa pelo governo militar
peruano. A esquerda insiste em confundir as nacionalizações burguesas
com a expropriação do capital que tem como sujeito o proletariado e o
governo dos trabalhadores. A expropriação sem indenização do capital por
parte da Revolução Cubana constituiu uma transição histórica entre as
nacionalizações burguesas mais avançadas e as nacionalizações que fazem
os governos dos trabalhadores que emergem das revoluções proletárias. O
conteúdo histórico delas está condicionado pelo curso posterior da luta
de classes, nacional e internacional. A esquerda é responsável pela
abertura de uma discussão deste processo, com base em uma investigação,
ao invés de substituí-lo com simples etiquetas.
Em numerosos casos, as nacionalizações burguesas operam como um
resgate do capital estrangeiro cobrado das finanças públicas. Esta
renúncia fiscal conspira contra o posterior desenvolvimento das forças
produtivas proposto pela nacionalização. Os casos mais conhecidos são o
executado pelo primeiro Peronismo em relação ao capital britânico que
precisava bater em retirada. O caso das ferrovias é paradigmático, porque
eles enfatizaram uma deterioração que já faz quase um século. Para
atingir seus fins, o imperialismo britânico bloqueou os créditos da
Argentina depositados em Londres. O mesmo pode ser dito da
nacionalização do petróleo da Venezuela, na década de 70, que serviu
para financiar uma especulação imobiliária enorme e ainda maior
corrupção.
Num contexto diferente, o governo de Chavez fez o mesmo com a
nacionalização das telecomunicações (Verizon) e siderurgia (Sidor), às
custas das enormes receitas de petróleo. Em um caso às compensou por um
preço elevado da Bolsa (que se estabelece, especulativamente, pela
rentabilidade esperada, em vez do valor dos ativos), ou seja, com um
prêmio sobre o capital. A nacionalização beneficiou a Verizon em outro
aspecto, porque, em seguida, sua cotação caiu em forma acentuada como
resultado da crise financeira internacional. Em outro, Sidor, o Estado
assumiu todas as dívidas ocultas (passivo trabalhista) do Grupo Techint,
que resultou em uma enorme indenização. A nacionalização deste tipo
constitui uma transferência de renda dos trabalhadores para os
capitalistas estrangeiros, através da renúncia fiscal. Representam uma
descapitalização e, portanto, uma hipoteca para o desenvolvimento das
forças produtivas. O colapso das empresas nacionalizadas, na Venezuela,
tem levado a um declínio nas expectativas estatizantes na consciência
das massas, que se utiliza a direita para promover o retorno do programa
privatizador.
A nacionalização de 51% do capital da Repsol-YPF, por Kirchner, se
fez às custas de uma substancial indenização por uma empresa que tinha
esgotado as reservas de petróleo e gás. O 'conto' nacionalizador
escondeu uma reprivatização do petróleo na Argentina, pois a YPF se
converteu numa empresa mista que cotiza nas bolsas internacionais. O
conto 'nacional e popular' do Kirchnerismo é, também, particularmente
'curioso', porque seu principal esforço foi direcionado para preservar,
com subsídios, para eles, as empresas privatizadas do Menemismo. O
resultado tem sido, em geral, um grande esvaziamento produtivo e
industrial na área de energia. Na onda da demagogia estatizante, a
Frente de Esquerda, na Argentina, desenvolveu uma forte denúncia contra a
reprivatização do petróleo, que foi então confirmada pela associação
secreta da YPF com a americana Chevron.
O manifesto político apresentado pelo Partido Obrero à FIT para a
campanha eleitoral de 2013, focou-se em uma crítica marxista das
nacionalizações capitalistas, suas contradições e limitações.
Outra questão que deve ser discutida é a nacionalização do petróleo
na Bolívia, que está mal contada. Consiste de uma grande mudança na
tributação do capital internacional de petróleo, que tirou as finanças
públicas do déficit crônico. O indigenismo oficial conseguiu, por esta
via, desviar a reivindicação da nacionalização total que fez a
insurreição de outubro de 2003. A mesma coisa aconteceu com a questão
agrária, culminando em um compromisso com a burguesia sojeira de Santa
Cruz e do leste da Bolívia, materializada em uma nova Carta
Constitucional. O compromisso com as companhias de petróleo foi possível
devido ao enorme aumento dos preços internacionais dos combustíveis.
Numerosos agrupamentos de esquerda e sociais que apoiam a FIT na
Argentina, apoiam o indigenismo pequeno burguês do Alti-plano sem
definir uma posição programática sobre este pseudo nacionalismo de
conteúdo capitalista. A doutrina estratégica do indigenismo boliviano é o
desenvolvimento do "Capitalismo andino" (tinha sido batizado de
"Socialismo Andino"), definido como uma aliança entre o capital
estrangeiro, o Estado boliviano e o pré-capitalismo agrário. A proposta
comete a gafe 'teórica' de apontar o Estado como uma categoria social e
de classe, ao lado de outras classes, ou seja, que não está acima das
classes, porque é uma superestrutura política, refletindo e protegendo,
como tal, a estrutura social dominante (é o “marxismo do século XXI").
Durante o período recente, a Bolívia tornou-se um negócio próspero das
empreiteiras brasileiras incluídas na “lava-jato”.
Brasil
7. As limitações colossais deste nacionalismo explicam, por um lado, o
escasso desenvolvimento das forças produtivas na década e meia passada,
assim como o impacto que causou a bancarrota capitalista mundial, nos
dois episódios principais – a queda de preços internacionais e a fuga de
capitais de 2009 e, com mais severidade, a atual. O sempre esgrimido
crescimento do PIB não capta esse desenvolvimento. O desenvolvimento das
forças produtivas é medido pela qualidade do investimento reprodutivo, a
aplicação de tecnologia, o nível de capacidade da força de trabalho, o
desenvolvimento da educação, da saúde, o progresso habitacional e a
infraestrutura urbana. Uma centralização produtiva dos recursos
econômicos existentes deveria operar como uma alavanca industrializadora
potente.
O governo PT/PMDB do Brasil tentou converter a Petrobrás, companhia
mista majoritariamente estatal, nesta alavanca industrial: mediante o
investimento da maior parte dos lucros; o monopólio operacional das
associações com o capital estrangeiro; um importante trabalho de
tecnologia; e o desenvolvimento de um entorno de serviços tecnológicos,
de prestadores de serviços e empreiteiras nacionais sem proceder a
nacionalizações, desenvolveu até certo ponto um nacionalismo burguês e
da grande burguesia. Utilizou as contribuições operárias nos fundos de
pensões e impulsionou a arrecadação fiscal ao banco público de
desenvolvimento – BNDES, com essa mesma finalidade. Tentou, inclusive,
impulsionar a criação de uma burguesia petroleira nacional, através do
apoio ao aventureiro Eike Batista. O colapso fenomenal desta tentativa
estabelece uma conclusão sucinta, porque terminou na quebra de todos os
setores envolvidos, golpe de Estado, que partiu de dentro do próprio
oficialismo, e na venda acelerada de ativos industriais e na revogação das
principais limitações impostas ao capital estrangeiro. A queda vertical
dos preços internacionais do petróleo, as pressões provocadas por um
elevado endividamento internacional, a desvalorização do capital
cotizante e, não menos importante, a difusão da enorme corrupção de toda
esta trama política e econômica (por parte dos setores interessados em
derrubá-lo), tudo isto está metendo o Brasil em uma crise de maior
alcance que a dos anos trinta. O ataque ao movimento operário é
devastador.
8. A esquerda brasileira, frente à crise de conjunto do capitalismo,
depara-se com a obrigação de desenvolver um programa operário e
socialista, ou seja, um governo de trabalhadores, a nacionalização sem
pagamento dos bancos e dos monopólios petroleiros e de toda a
empresa que feche, a escala móvel de salários e horas de trabalho, a
abertura dos livros de todos os monopólios capitalistas, o controle
operário e a convocação de um plano de ação com toda a esquerda e
setores combativos da América Latina.
Ocorre, no entanto, o contrário: propõe a fórmula da democracia, ou
seja, sem transição revolucionária, nem governo dos trabalhadores.
Quando ainda nem se encerrou a etapa do golpe de Estado que destituiu
Dilma Roussef (longe disso, o governo golpista reúne uma base
parlamentar precária), a agenda dominante na esquerda brasileira são as
eleições municipais de outubro próximo e a possibilidade de consagrar
prefeita de São Paulo a uma candidata patronal, Luiza Erundina, que já
governou esta cidade em termos puramente capitalistas. Erundina é uma
ex-petista, oriunda da ala clerical, ministra do governo de Itamar
Franco e até há pouco membro do partido de direita, PSB, e apoiadora do
candidato Eduardo Campos, que morreu em um acidente na campanha
eleitoral do ano passado. A candidata foi lançada pelo PSOL, uma frente
de esquerda e das comunidades de base que romperam com o PT há mais de
uma década. O grupo ligado ao PTS na Argentina pediu seu ingresso no
PSOL. No entanto, em sua terra natal, sua casa central, reivindica a
independência política da classe operária e a hostilidade às
candidaturas patronais. Esta duplicidade entre o principismo e o
oportunismo, é característica de todas as correntes centristas. O PSOL,
em contraste com a FIT da Argentina, que chamou o voto em branco contra
Scioli e Macri na Argentina, apoiou no segundo turno eleitoral das
eleições passadas a candidatura de Dilma Roussef.
Em oposição ao julgamento político de Dilma Roussef, o PT e grande
parte da esquerda tem se refugiado na reivindicação de um plebiscito que
autorize a antecipação das eleições para a presidência (que deveria ter
lugar em 2018), o qual deve ser votado pelo mesmo parlamento golpista e
de ladrões. A proposta conta até certo ponto, com a simpatia de uma
parte da imprensa golpista, que visualiza a impossibilidade de um ajuste
a fundo da economia sem um governo eleito desvinculado dos políticos burgueses submetidos aos processos judiciais contra a corrupção. No Brasil
existe uma desintegração expressa da burguesia contratista
(empreiteiras) e o desenvolvimento de uma reconfiguração capitalista
acompanhada por quebras, resgates e concentração de capitais. A proposta
de eleições presidenciais ou gerais de parte da esquerda, não faz
referência à derrubada do governo Temer por meio de uma ação direta das
massas, que ligue a luta contra as demissões, a carestia e as
privatizações aos métodos da greve e da Greve Geral. Os observadores
políticos preveem que a realização de novas eleições daria a vitória a
uma das diversas coalizões direitistas presentes. A palavra de ordem
eleitoral não educa aos trabalhadores em uma política de luta de
classes. Busca-se uma saída imediata à crise política, ou seja, um
compromisso, em lugar da preparação sistemática da classe operária para
lutar por um governo dos trabalhadores.
No Brasil, a esquerda integrada ao PT impulsionou a chegada desse
partido ao governo em coalizão com o PMDB. Isto ocorreu inclusive depois
que Lula firmou o acordo com o FMI, na campanha eleitoral de 2002 e
nomeou o atual ministro da Fazenda de Temer para a presidência do Banco
Central, depois de um acordo fechado entre Lula e William Rhodes, então
presidente do Citibank (W. Rhodes, Financial Times, 24.06.2004). O PSOL
reivindica, de conjunto, o PT “das origens”, ou seja, que segue aderindo
à perspectiva estratégica traçada pela direção fundadora do PT,
inclusive depois da experiência e os resultados políticos de quase
quatro décadas. A partir desta reivindicação do ponto de partida está
seguindo a seu modo o rumo do seu espelho retrovisor.
Em oposição a esta linha estratégica, é necessário um debate que
estabeleça um novo ponto de partida, ou seja, um programa e uma política
realmente socialistas.
A este debate deveria integrar-se o PSTU, o qual acaba de sofrer uma
cisão em torno à questão do recente golpe de Estado, por um lado, e do
caráter das mobilizações anti-governamentais a partir de 2013. As
propostas democratizantes da esquerda demonstram toda sua inconsistência
frente à derrubada dos processos nacionalistas e à crise de regime que
emergiu como sua consequência. A América Latina ingressa em uma nova
etapa de maiores confrontações sociais e políticas que superam os
limites de seus Estados.
Golpismo
9. O impeachment contra a presidenta Dilma Roussef e sua eventual
destituição constituem um golpe de Estado “tout court (curto e grosso)”,
sem acréscimos, porque implicam uma virada política reacionária nas
relações de classe existentes. Substitui a um governo que revelou sua
inconsistência para aplicar a política de ajuste que reivindica o
capital e para salvar os políticos burgueses e aos grandes capitalistas
dos processos judiciais por corrupção. Inaugura uma nova proposta de
ofensiva contra as massas, sem esperar as novas eleições, nem obter um
novo mandato eleitoral. O governo de Temer não é uma tentativa de
interinato constitucional, mas sim uma nova coalizão política para uma
nova política, que encare o resgate da quebra capitalista e uma ofensiva
mais decidida contra os trabalhadores. Não existe uma mudança no
caráter de classe do governo, mas sim uma tentativa de modificar a
relação pré-existente entre as distintas classes.
Para a esquerda revolucionária, a luta contra o golpe é uma questão
de princípios, porque significa defender as posições conquistadas pela
classe operária frente à ofensiva capitalista – de nenhum modo apoiar ao
governo capitalista destituído. Não defendemos “o mal menor”, mas sim a
posição conquistada pelo proletariado dentro da sociedade e o Estado
capitalista; por isso não esconde sua hostilidade com o governo
estabelecido. A esquerda democratizante, ao contrário, atribui um
caráter progressivo à gestão ajustadora de Roussef, inclusive quando
muitos, entre essa esquerda haviam criticado e até enfrentado a política
ajustadora dessa gestão. Por outro lado, aqueles que discordam da
caracterização de um golpe de Estado, destacam a identificação de
classes entre ambos os bandos capitalistas, ignorando que representa um
salto de qualidade do ataque do Estado capitalista contra as massas.
Àqueles a quem as formas constitucionais se identificam com o
golpismo é oportuno recordar que o governo constitucional que iniciou em
1973, na Argentina, desenvolveu-se por meio de uma sucessão de golpes
“constitucionais”, que primeiro eliminaram ao mandatário eleito,
Câmpora, depois a governadores do mesmo campo político, inclusive por
meios policiais; mais tarde, à criação da Triple A (Aliança Anticomunista Argentina, um grupo parapolicial e terrorista criado dentro do peronismo, da gendarmeria e das Forças Armadas ligados à maçonaria anticomunista Propaganda Due, que assassinou artistas, intelectuais, militantes de esquerda,
estudantes, historiadores e sindicalistas, além de utilizar como
métodos as ameaças, as execuções sumárias e o desaparecimento forçado
de pessoas durante a década de 1970. Foi responsável pelo desaparecimento e morte de quase 700 pessoas e à militarização do
país) – um processo que culminou com a ditadura militar. Naquele momento,
o Partido Obrero advertiu acerca da sequência de golpes, que foram
escamoteados nas formas parlamentares e na popularidade de Perón.
Apesar da falácia dos termos do “impeachment” (pedalada contábil de
contas fiscais), Dilma Roussef, o PT e a burocracia dos sindicatos se
recusaram a desconhecer o voto do Congresso e propor um conflito entre
poderes. A razão é que poderia ter aberto uma brecha para a intervenção
das massas, por um lado, e para a intervenção das forças armadas, por
outro, que teria sido em apoio ao Congresso. O árbitro do golpe de Estado são as forças armadas, ainda que não se trate de um golpe
militar. O golpe de Estado no Brasil não é mais que o segundo ato
golpista depois da derrubada de Lugo no Paraguai, o qual também se
constituiu em um “impeachment” de seus próprios aliados de governo – o
partido Liberal. A burguesia brasileira apoiou com força esse golpe, em
uma espécie de ensaio geral do que se daria depois no Brasil. O
movimento operário e camponês retrocedeu fortemente no Paraguai como
consequência da vitória do golpe, enquanto que, por outro lado,
facilitou uma avalanche de compras de empresas e terras por parte da
burguesia brasileira, com a cumplicidade do governo de Dilma Roussef. A
destituição de Lugo e de Roussef por parte de seus próprios aliados
constitui uma prova contundente da falácia que aposta na colaboração de
classes entre os partidos operários ou pequeno burgueses populares com a
grande burguesia nacional e inclusive com o capital financeiro
internacional.
Uruguai e Chile
10. A Frente Ampla do Uruguai passou por um processo parecido ao do
governo da Frente Brasil Popular. Tabaré Vasquez chegou ao governo em 2005
depois de um longo período de colaboração política com o imperialismo
desde sua gestão em Montevidéu e o respaldo aos ataques patronais ao
movimento operário (greve da construção civil). A FA se constituiu como
uma frente “policlassista”, a princípio com o argumento que era o
veículo das transformações democráticas, agrárias e antiimperialistas. O
balanço é um aumento do submetimento ao capital financeiro, a
primarização maior da economia, a concentração da terra, a
desindustrialização e o avanço da especulação bancária-imobiliária.
A Frente Ampla leva adiante um ajuste contra o movimento operário,
rebaixando salários e aposentadorias, aumentando as tarifas e os
impostos ao salário, e cortando o gasto social na saúde e educação. A
tentativa de proibição de greves (medida que já havia aplicado Mujica
contra os municipários) provocou uma rebelião das bases dos sindicatos
na educação, ao mesmo tempo em que reforçou a integração da burocracia
sindical ao Estado (o caso de Castillo é um dos mais exemplares). Está
se processando um aprofundamento da tendência à ruptura de um setor do
ativismo com o governo. Neste quadro, a direita da FA se desloca até um
governo de “unidade nacional”; de outro lado, as massas, na busca de um
novo polo político de caráter anticapitalista. A tese da ala esquerda da
FA e em especial do Partido Comunista, de que os governos
frenteamplistas não são governos do capital, mas sim “governos em
disputa” é uma justificativa para continuar seu trabalho de retaguarda
do imperialismo e neutralizar os protestos populares para um conflito
interno dentro da Frente Ampla e do próprio governo.
No Uruguai, no entanto, revela-se uma crise semelhante à que pôs fim
ao governo patronal liderado pelo PT, no Brasil, incluindo a pretensão
de Tabaré Vazquez de desenvolver, como tentou Dilma Rousseff, um ajuste
econômico e social sem ter que, primeiro, proceder com uma mudança de
alianças e regime político. Em oposição às correntes frenteamplistas
atual, ou que já romperam com a FA (Assembléia Popular) de recompor "a FA
das origens" ou copiar um chavismo a la uruguaio, o PT do Uruguai
convoca os trabalhadores avançados a construir um partido
revolucionário.
O Chile, após o retorno de Bachelet ao governo, assiste a uma
profunda crise política há somente dois anos que um esgotado
concertacionismo tentou reviver a "Unidade Popular", integrando ao
governo o Partido Comunista. A crise da Nova Maioria enraíza-se na
incapacidade de conter aos diferentes movimentos de lutadores que cortam
o país, no marco de um capitalismo chileno que confiscou de uma maneira
abismal os salários dos trabalhadores e a dilapidação dos recursos
naturais. Trabalhadores terceirizados da mineração, florestais,
portuários, do comércio e o varejo, ao lado de uma luta tenaz do
movimento estudantil por uma educação gratuita, nos últimos dez anos têm
sido a manifestação do estrangulamento das condições de vida das massas
populares nas mãos de uma burguesia nativa aliada com o capital
imperialista internacional. O resultado de quatro décadas de políticas
"neoliberais" de abertura comercial, privatizações (incluindo o profundo
confisco da poupança dos aposentados pelas AFP) e um trabalho
flexibilizado em todas as áreas tem sido a base de um ataque brutal sobre os
trabalhadores, que desenvolvem hoje respostas de luta em todo o país.
Esta versão ultra reacionária da colaboração de classe, que é a Nova
Maioria, sofreu desde o início um retrocesso político, chegando ao
governo com 60% de abstenção. Esta tendência continua se desenvolvendo
como consequência de uma profunda crise política que coloca no centro a
todos os partidos tradicionais que têm defendido por décadas a herança
da ditadura. Esta versão degradada da política frente populista está
fadada ao fracasso, já que suas pretensões de propor um plano de
"reformas" sem alterar as bases sociais nem as instituições criadas sob a
ditadura, não pode representar, sob qualquer termo, a canalização das
aspirações sociais dos trabalhadores e dos setores populares... Estamos
diante de uma política de resgate da herança deixada por Pinochet. Esta
situação se agravará, produto dos golpes da bancarrota capitalista,
donde a queda dos preços do cobre está diminuindo a arrecadação fiscal,
empurrando uma política de ajuste e limitando um regime de arbitragem
por meio da assistência social. As demissões começaram a massificarem-se
no país, o que está dando origem a diferentes greves no setor do
comércio e a luta dos trabalhadores do salmão em Porto Montt, que está
marcando um ressurgimento do movimento operário baseado em piquetes,
assembleias de base e greves ilegais.